Compartilhado do site: http://www.labor.org.br/2015/
Nossa sociedade
está exigindo e impondo à instituição escola mudanças estruturais, mexendo nos
seus próprios alicerces. São mudanças de fundo, não só de figura.
O papel e a finalidade da escola na sociedade mudou; o aluno que ela
recebe, mudou; a expectativa do aluno que ela deve formar, mudou.
Por exemplo: até por volta dos anos 60, a escola era uma instituição
voltada para a formação intelectual das pessoas, desenvolvendo algumas competências
básicas para a vida social e algumas habilidades necessárias para o exercício
de diversas profissões. À medida que o aluno progredia na escola,
especializava-se naquelas áreas de conhecimento chamadas acadêmicas e também
conseguia exercer uma das poucas profissões que lhe davam o direito de usar o
título de doutor.
A escola era seletiva - confortavelmente, escancaradamente,
legitimamente seletiva. Como qualquer instituição que forma profissionais e
especialistas, a escola, a cada etapa, ia selecionando aqueles mais capazes
para o exercício destas “especialidades”. Era isso, o que a sociedade esperava
dela. Como ainda espera das escolas de música, de desenho ou de especialidades
esportivas.
O “exame de admissão”, prova obrigatória para ingresso no ginásio (5a a
8a séries), era um pequeno vestibular com um nível de exigência espantoso.
Quanto mais difícil a entrada do aluno numa escola ginasial, melhor ela era
vista em termos de qualidade de ensino e melhores eram suas chances de
corresponder a esta expectativa, pois lidava com alunos selecionados (os mais
competentes e talentosos para aquele conjunto específico de atividades).
Evidentemente, como a procura pelas escolas públicas (gratuitas) era maior,
acontecia com as escolas públicas de ensino ginasial, o que hoje acontece com
as universidades públicas que atendem alunos selecionados: valorizadas enquanto
qualidade de ensino e atacadas por atenderem as camadas mais ricas da
população.
Os alunos que não tinham talento ou interesse para os estudos acadêmicos
saíam da escola e se integravam na sociedade através do trabalho.
Especializavam-se nas mais diversas profissões aprendendo com o pai, o patrão,
até mesmo por conta própria no exercício das suas funções.
É um equívoco pensar que os alunos que abandonavam a escola eram todos
das camadas mais pobres da população. As famílias abastadas não se preocupavam
muito em dar uma alta escolaridade
para seus filhos. Havia uma quantidade de profissões de prestígio para as quais o número de anos de escola pouco contava: fazendeiros, negociantes, políticos, uma grande variedade de autônomos podiam exercer com sucesso suas funções sem alta escolaridade. As “moças de família” eram, mesmo, retiradas da escola ou incentivadas a abandonar seus estudos antes de chegar ao segundo ou terceiro grau, pois se acreditava que moça muito instruída não conseguia marido. (note-se que isso acontecia no Brasil até a segunda metade do século 20!) Famílias menos abastadas costumavam escolher um dos filhos para “seguir carreira” na escola enquanto todos os outros trabalhavam para assegurar seus estudos. Este filho escolhido era, em geral, aquele que mostrava mais interesse pelos estudos, mais gosto pela leitura e encarnava na família, a figura do intelectual, do doutor em potencial.
para seus filhos. Havia uma quantidade de profissões de prestígio para as quais o número de anos de escola pouco contava: fazendeiros, negociantes, políticos, uma grande variedade de autônomos podiam exercer com sucesso suas funções sem alta escolaridade. As “moças de família” eram, mesmo, retiradas da escola ou incentivadas a abandonar seus estudos antes de chegar ao segundo ou terceiro grau, pois se acreditava que moça muito instruída não conseguia marido. (note-se que isso acontecia no Brasil até a segunda metade do século 20!) Famílias menos abastadas costumavam escolher um dos filhos para “seguir carreira” na escola enquanto todos os outros trabalhavam para assegurar seus estudos. Este filho escolhido era, em geral, aquele que mostrava mais interesse pelos estudos, mais gosto pela leitura e encarnava na família, a figura do intelectual, do doutor em potencial.
Certamente a escolaridade dos pais influenciava nas suas ambições com
relação à escola e, portanto, filhos de pais com menor escolaridade também
saíam mais cedo da escola ou nem mesmo chegavam a frequenta-la.
Mas, o fundamental é que a sociedade absorvia bem, sem qualquer
percalço, aquelas crianças que deixavam a escola, em qualquer momento.
Hoje, a sociedade exige que absolutamente todas as crianças de 7 a 14 ou
15 anos estejam frequentando escola: até os 14 anos, a única ocupação possível
e legítima para um cidadão, é a escola. Não há espaço que substitua, para as
crianças, o espaço da escola e, se pretendem ocupar-se em qualquer outra
atividade, deverão apresentar um comprovante de frequência à escola. Às
famílias, já não é permitido manter seus filhos em casa, sem escola: se o fazem
são procuradas, advertidas e até punidas pelos órgãos competentes.
Por outro lado, hoje a sociedade não absorve mais aqueles que não
completaram seu curso fundamental, isto é, no mínimo 8 anos de escolaridade.
Para eles, não há profissão nem emprego. E, para cada função adulta que o
cidadão exerce, há algumas habilidades que necessariamente passam pela formação
escolar, já que para lidar com os diversos equipamentos de trabalho que a
moderna tecnologia propiciou são necessários procedimentos cada vez mais
sofisticados.
Assim, a escola não é mais uma oportunidade de se preparar para um
conjunto mais ou menos extenso de profissões: a escola é uma condição de
socialização e, sem ela, a criança estará á margem da nossa sociedade. Sem
escolaridade, o adulto correrá um enorme risco de exclusão social.
E que consequências esta nova ordem das coisas trás para a instituição
escola? Pretendemos analisar aqui, 3 consequências essenciais:
Primeira: A escola não pode ser seletiva. Ela tem que absorver toda a
população de crianças e adolescentes; e tem que dar espaço para todos os
adultos que ainda não atingiram escolaridade suficiente para o exercício das
profissões que escolheram. A escola não pode excluir, não pode expulsar, não
pode encaminhar alunos para outras instituições, não pode rejeitar nem
abandonar seus alunos. Costumamos dizer que as famílias não conseguem mais
educar suas crianças e que a escola é chamada a cumprir aquilo que a família se
tornou incapaz. Na verdade, a sociedade subtraiu da família o poder de decidir
e a exclusividade na formação dos seus membros.
Perrenoud[1] deixa isso bem explícito quando comenta:
“ a
escolaridade obrigatória constituiu uma formidável máquina de privar os pais de
seu poder educativo, (...) A criança deixou de pertencer à sua família. A lei
obriga os pais, não somente a proverem a educação de seus filhos, mas a cederem
uma parte dela à escola.”
Ao mesmo tempo que não mais permite que a família decida sozinha sobre a
educação dos seus membros, a sociedade transferiu para a escola uma
responsabilidade que era só da família: a de acolher e dar um espaço legítimo
para alunos com os mais diversos talentos e as mais diversas limitações.
Esta mudança nos papéis, embora até aprovada em tese por famílias e escolas,
não tem acontecido sem conflitos, desequilíbrios e insatisfações de parte a
parte. Por um lado, a escola se sente obrigada a desenvolver papéis para os
quais ainda não está preparada nem equipada; por outro lado, os pais se
ressentem de serem obrigados a partilharem a educação de seus filhos com alguém
que pensa diferente ou cuja orientação pode não combinar com a sua própria
forma de educar. No caso das escolas públicas no Brasil, os pais nem sequer
podem escolher a escola onde gostariam que seu filho estudasse.
Isso também
acontece em países do primeiro mundo, como atesta Perrenoud: “Um observador
apressado veria, na relação dos pais com os professores, uma figura particular
de sua relação com todos aqueles que se ocupam de seus filhos (...) Ele imaginaria
que os pais, não tendo competência ou o tempo requerido para cuidar ou educar
seus próprios filhos, delegariam facilmente esta tarefa a profissionais mais
disponíveis ou qualificados. (,,,) Entre professores e pais, a relação não é
tão simples. Os pais não são simples usuários, não têm o poder de renunciar à
escolaridade. Os mais afortunados ou os mais hábeis podem pedir e obter uma
mudança de classe ou de escola mas...” pg 111, 112
Segunda: A escola atual não pode mais ter como função preparar para um tipo ou
um conjunto de profissões. Ela deverá ser mais abrangente, mais diversificada e
plural para garantir um espaço legítimo para todos os tipos de crianças e
adolescentes. Sua função não pode mais ser preparar para a carreira acadêmica,
mas é agora socializar, preparar para a vida na nossa sociedade, desenvolver
habilidades básicas para o exercício das mais diversas profissões, encontrar
formas de superar eventuais limitações, descobrir talentos, despertar vocações
e tantas coisas mais.
“ A democratização
dos estudos trouxe para as escolas de ensino médio alunos que outrora
ingressavam diretamente na vida ativa. Não há mais “herdeiros” e defensores da
cultura escolar (...) No ensino médio os estabelecimentos recebem alunos muito
heterogêneos no que tange à relação com o saber" idem pg 68.
Phillippe Perrenoud se detém na necessidade da escola atender a uma
população de alunos com diferentes níveis de interesse. Trabalha o desejo de
saber e a decisão de aprender como um tipo de fenômeno que se manifesta em
diferentes intensidades, distribuídas na população seguindo o padrão de uma
curva normal, como a altura ou o tamanho do pé. Isso quer dizer que haveria um
punhado de alunos sem interesse em aprender, outro tanto de alunos muito
interessados em aprender e uma maioria de alunos medianamente interessados.
Perrenoud considera que, ao receber toda a população de crianças e
adolescentes, sem qualquer discriminação, a escola obrigatória não pode mais
exigir o mesmo nível de interesse e a mesma disposição para aprender. Ela deve,
portanto, modificar seu programa de ensino:
"Se a
escola quisesse criar e manter o desejo de saber e a decisão de aprender,
deveria diminuir consideravelmente seus programas, de maneira a integrar em um
capítulo tudo que permitiria aos alunos dar-lhe sentido e ter vontade de se
apropriar desse conhecimento” idem pg 69
Mas podemos entender tal fenômeno de uma forma diferente, ou seja,
considerando que o interesse em aprender está distribuído, sobretudo em relação
ao objeto da aprendizagem, ao que se quer aprender. Assim, quanto maior a
diversidade de pessoas, maior a diversidade de alvos de interesse. Isso quer
dizer que a variação se daria, sobretudo na direção do desejo de aprender, como
variam as opções profissionais ou as preferências em relação a músicas ou
filmes.
Se a escola passou a ser obrigatória para todos, ela deveria, então,
oferecer um cardápio de assuntos mais variado, de forma a atender melhor à
inevitável diversidade de interesses.
O que aconteceu com a nossa programação de ensino, foi o contrário: o
leque de disciplinas obrigatórias diminuiu muito para favorecer um maior tempo
de estudo para aquelas disciplinas consideradas mais nobres e cuja aprendizagem
de uma grande parcela de alunos não tem atingido o esperado. Assim, para
garantir que todos os alunos aprendam todo o programa de matemática e
português, essas matérias ocupam tanto tempo do aluno que outras matérias como
trabalhos manuais, canto, francês, foram abolidas do programa das escolas
enquanto outras, como geografia, história, ciências, artes, tiveram reduzido o
tempo de aulas.
Isso acontece porque ainda se considera a escola uma instituição com o
objetivo de ensinar um determinado tipo de competências, umas poucas
especialidades: uma instituição que tem por obrigação formar doutores, como era
antes.
Um aluno com pouco interesse por atividades teóricas e pouco talento
para desenvolver abstrações, demandará muito tempo e muito esforço para
assimilar a resolução de uma equação de segundo grau. Este conteúdo, do ponto
de vista da matemática ou do raciocínio abstrato, corresponde a uma atividade
com alguma sofisticação, assim como, no caso da música, seria tocar uma sonata
de Beethovan; também corresponde a uma competência necessária para um nível de
especialização profissional, assim como, no caso do futebol, para ser jogador
profissional de um time organizado, é necessária uma maior desenvoltura e
domínio de bola. Resolver uma equação de segundo grau não será,
necessariamente, obrigatório para o exercício de muitas especialidades. Há uma
infinidade de pessoas bem sucedidas, consideradas expoentes da intelectualidade
ou de outras formas de realização que atualmente, seriam incapazes de resolver
uma equação de segundo grau. No entanto, a resolução de uma equação de segundo
grau é uma competência obrigatória para finalizar a 8a série!
Na nossa forma de ver, a escola deveria diversificar MUITO a oferta de
disciplinas, de formas ou estratégias de ensino, de objetivos. Deveria também
oferecer um grande número de opções de cursos mais avançados, de forma que cada
aluno tivesse a oportunidade de conhecer o básico em diferentes áreas e pudesse
escolher se aprofundar na área que melhor lhe conviesse.
Terceira: a escola atual estaria oscilando entre dois objetivos aparentemente
antagônicos - melhorar a qualidade de ensino e acolher todas as pessoas com
suas variadas aptidões.
Por exemplo: a boa escola seria aquela que oferece um ensino bom,
"puxado", que realmente prepara o aluno para vencer os desafios de
uma sociedade e um mercado de trabalho cada vez mais exigentes? Esta escola
valoriza um ensino que reprova todos aqueles alunos que não atingem um bom
nível de evolução no espaço de cada ano. Reprovando, estimula a evasão. Ali,
não haverá lugar para crianças que, trazidas pelo PETI, desembarcam na escola
com 10 ou 11 anos, depois de estarem desde os 5 ou 6 anos trabalhando junto com
suas famílias.
Ou a boa escola seria aquela que tem espaço para todos os alunos que a
procuram, oferecendo um ambiente acolhedor, que valoriza seus progressos e seus
esforços, dá mais tempo para os alunos aprenderem e vencerem suas barreiras,
evita reprovações que possam desestimulá-los, etc.? Esta escola valoriza um
ensino mais direcionado para as necessidades dos alunos e põe em segundo plano
a excelência da própria produção que tradicionalmente se espera. Em geral,
comparada ao primeiro tipo, será considerada uma escola fraca. Não prepara seus
alunos para competirem num mercado de trabalho cada vez mais sofisticado.
Quando o governo impõe às escolas públicas o ciclo de 4 anos, os
programas de recuperação paralela e progressão continuada, está optando pelo
segundo tipo de atendimento escolar. Mas quando o governo impõe a aplicação do
SARESP (SAEB, PISA, ...) e classifica as escolas de acordo com o número de
crianças aprovadas nesse exame, está optando pelo primeiro tipo.
O que motivou ambas as iniciativas é válido de alguma forma. Pois,
eticamente não podemos nos submeter a este dilema. Entretanto, a superação
deste e de muitos dilemas que estão sendo colocados para a escola no nosso
tempo, não é tarefa fácil e exige muita reflexão, muita criatividade, muita
renúncia aos nossos padrões antigos, nossos preconceitos, etc.
Provavelmente haverá outras consequências das quais ainda não nos demos
conta. Mas essas três já prenunciam o quanto e o tanto de transformações que a
escola deverá sofrer.
Não será preciso modificar currículos, ampliar o leque de disciplinas,
repensar exigências?
Não será preciso avaliar a avaliação, tanto aquela que se tem feito a
respeito do aluno quanto a que se refere a professores, escolas e ao próprio
sistema?
Não será preciso nos preparar para as novas tarefas que se impõem?
Pois é: não é à toa que estamos vivendo tanta turbulência nas escolas e
no sistema educacional como um todo. Não é à toa que há tantas hesitações,
tantas contradições, oportunidades e descaminhos, idas e voltas, ansiedades e
angústias...
Evidente que não é fácil e nem mesmo saudável para o professor,
principalmente aquele que trabalha nas escolas públicas: ele está no olho deste
furacão!
Nossa experiência nos revelou o quanto esses professores das escolas
públicas se sentem desamparados e pouco instrumentalizados dentro da sala de
aula.
O quanto se embaraçam na tentativa de reproduzir os modelos de ensino
que tiveram ou idealizaram e que, agora, não atingem o menor sucesso. O quanto
se sentem perdidos na tentativa de compreender, assimilar e cumprir a enxurrada
de orientações que recebem, sempre diversas e muitas vezes contraditórias.
Nós, da Associação Educacional Labor, acreditamos na importância
fundamental de se trabalhar na formação e aperfeiçoamento dos professores para
que eles possam se sentir mais conscientes, mais fortalecidos, mais capazes de
se tornarem protagonistas dessas profundas mudanças que estão sendo cobradas
das escolas.
Mas parece-nos que antes de qualquer trabalho de ensino, sua capacitação
passa por ajudá-los a reconhecer:
1. a situação
complicada e promissora em que se encontra a tarefa de educar no nosso tempo;
2. que as
dificuldades que enfrentam não são apenas por falhas suas;
3. que não devem se
sentir vítimas mas protagonistas do processo de mudança;
4. que o papel do
professor é fundamental, digno e precioso. Uma arte que merece toda inspiração.
Percebemos que depois de se situarem com realismo dentro do contexto do
seu trabalho e a sua missão e depois de se sentirem valorizados e respeitados,
os professores desejam se aperfeiçoar e começam a valorizar seus alunos e a fazer
deles seus parceiros. Então, a mudança é, mesmo, radical!
Cabe à nossa geração enfrentar o enorme desafio de reinventar a escola!
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