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domingo, 17 de abril de 2016

Desafios e dilemas da escola atual

Compartilhado do site: http://www.labor.org.br/2015/
Nossa sociedade está exigindo e impondo à instituição escola mudanças estruturais, mexendo nos seus próprios alicerces. São mudanças de fundo, não só de figura.
O papel e a finalidade da escola na sociedade mudou; o aluno que ela recebe, mudou; a expectativa do aluno que ela deve formar, mudou.
Por exemplo: até por volta dos anos 60, a escola era uma instituição voltada para a formação intelectual das pessoas, desenvolvendo algumas competências básicas para a vida social e algumas habilidades necessárias para o exercício de diversas profissões. À medida que o aluno progredia na escola, especializava-se naquelas áreas de conhecimento chamadas acadêmicas e também conseguia exercer uma das poucas profissões que lhe davam o direito de usar o título de doutor.
A escola era seletiva - confortavelmente, escancaradamente, legitimamente seletiva. Como qualquer instituição que forma profissionais e especialistas, a escola, a cada etapa, ia selecionando aqueles mais capazes para o exercício destas “especialidades”. Era isso, o que a sociedade esperava dela. Como ainda espera das escolas de música, de desenho ou de especialidades esportivas.
O “exame de admissão”, prova obrigatória para ingresso no ginásio (5a a 8a séries), era um pequeno vestibular com um nível de exigência espantoso. Quanto mais difícil a entrada do aluno numa escola ginasial, melhor ela era vista em termos de qualidade de ensino e melhores eram suas chances de corresponder a esta expectativa, pois lidava com alunos selecionados (os mais competentes e talentosos para aquele conjunto específico de atividades). Evidentemente, como a procura pelas escolas públicas (gratuitas) era maior, acontecia com as escolas públicas de ensino ginasial, o que hoje acontece com as universidades públicas que atendem alunos selecionados: valorizadas enquanto qualidade de ensino e atacadas por atenderem as camadas mais ricas da população.
Os alunos que não tinham talento ou interesse para os estudos acadêmicos saíam da escola e se integravam na sociedade através do trabalho. Especializavam-se nas mais diversas profissões aprendendo com o pai, o patrão, até mesmo por conta própria no exercício das suas funções.
É um equívoco pensar que os alunos que abandonavam a escola eram todos das camadas mais pobres da população. As famílias abastadas não se preocupavam muito em dar uma alta escolaridade
para seus filhos. Havia uma quantidade de profissões de prestígio para as quais o número de anos de escola pouco contava: fazendeiros, negociantes, políticos, uma grande variedade de autônomos podiam exercer com sucesso suas funções sem alta escolaridade. As “moças de família” eram, mesmo, retiradas da escola ou incentivadas a abandonar seus estudos antes de chegar ao segundo ou terceiro grau, pois se acreditava que moça muito instruída não conseguia marido. (note-se que isso acontecia no Brasil até a segunda metade do século 20!) Famílias menos abastadas costumavam escolher um dos filhos para “seguir carreira” na escola enquanto todos os outros trabalhavam para assegurar seus estudos. Este filho escolhido era, em geral, aquele que mostrava mais interesse pelos estudos, mais gosto pela leitura e encarnava na família, a figura do intelectual, do doutor em potencial.
Certamente a escolaridade dos pais influenciava nas suas ambições com relação à escola e, portanto, filhos de pais com menor escolaridade também saíam mais cedo da escola ou nem mesmo chegavam a frequenta-la.
Mas, o fundamental é que a sociedade absorvia bem, sem qualquer percalço, aquelas crianças que deixavam a escola, em qualquer momento.
Hoje, a sociedade exige que absolutamente todas as crianças de 7 a 14 ou 15 anos estejam frequentando escola: até os 14 anos, a única ocupação possível e legítima para um cidadão, é a escola. Não há espaço que substitua, para as crianças, o espaço da escola e, se pretendem ocupar-se em qualquer outra atividade, deverão apresentar um comprovante de frequência à escola. Às famílias, já não é permitido manter seus filhos em casa, sem escola: se o fazem são procuradas, advertidas e até punidas pelos órgãos competentes.
Por outro lado, hoje a sociedade não absorve mais aqueles que não completaram seu curso fundamental, isto é, no mínimo 8 anos de escolaridade. Para eles, não há profissão nem emprego. E, para cada função adulta que o cidadão exerce, há algumas habilidades que necessariamente passam pela formação escolar, já que para lidar com os diversos equipamentos de trabalho que a moderna tecnologia propiciou são necessários procedimentos cada vez mais sofisticados.
Assim, a escola não é mais uma oportunidade de se preparar para um conjunto mais ou menos extenso de profissões: a escola é uma condição de socialização e, sem ela, a criança estará á margem da nossa sociedade. Sem escolaridade, o adulto correrá um enorme risco de exclusão social.
E que consequências esta nova ordem das coisas trás para a instituição escola? Pretendemos analisar aqui, 3 consequências essenciais:
Primeira: A escola não pode ser seletiva. Ela tem que absorver toda a população de crianças e adolescentes; e tem que dar espaço para todos os adultos que ainda não atingiram escolaridade suficiente para o exercício das profissões que escolheram. A escola não pode excluir, não pode expulsar, não pode encaminhar alunos para outras instituições, não pode rejeitar nem abandonar seus alunos. Costumamos dizer que as famílias não conseguem mais educar suas crianças e que a escola é chamada a cumprir aquilo que a família se tornou incapaz. Na verdade, a sociedade subtraiu da família o poder de decidir e a exclusividade na formação dos seus membros.
Perrenoud[1] deixa isso bem explícito quando comenta:
 a escolaridade obrigatória constituiu uma formidável máquina de privar os pais de seu poder educativo, (...) A criança deixou de pertencer à sua família. A lei obriga os pais, não somente a proverem a educação de seus filhos, mas a cederem uma parte dela à escola.”
Ao mesmo tempo que não mais permite que a família decida sozinha sobre a educação dos seus membros, a sociedade transferiu para a escola uma responsabilidade que era só da família: a de acolher e dar um espaço legítimo para alunos com os mais diversos talentos e as mais diversas limitações.
Esta mudança nos papéis, embora até aprovada em tese por famílias e escolas, não tem acontecido sem conflitos, desequilíbrios e insatisfações de parte a parte. Por um lado, a escola se sente obrigada a desenvolver papéis para os quais ainda não está preparada nem equipada; por outro lado, os pais se ressentem de serem obrigados a partilharem a educação de seus filhos com alguém que pensa diferente ou cuja orientação pode não combinar com a sua própria forma de educar. No caso das escolas públicas no Brasil, os pais nem sequer podem escolher a escola onde gostariam que seu filho estudasse.
Isso também acontece em países do primeiro mundo, como atesta Perrenoud: “Um observador apressado veria, na relação dos pais com os professores, uma figura particular de sua relação com todos aqueles que se ocupam de seus filhos (...) Ele imaginaria que os pais, não tendo competência ou o tempo requerido para cuidar ou educar seus próprios filhos, delegariam facilmente esta tarefa a profissionais mais disponíveis ou qualificados. (,,,) Entre professores e pais, a relação não é tão simples. Os pais não são simples usuários, não têm o poder de renunciar à escolaridade. Os mais afortunados ou os mais hábeis podem pedir e obter uma mudança de classe ou de escola mas...” pg 111, 112
Segunda: A escola atual não pode mais ter como função preparar para um tipo ou um conjunto de profissões. Ela deverá ser mais abrangente, mais diversificada e plural para garantir um espaço legítimo para todos os tipos de crianças e adolescentes. Sua função não pode mais ser preparar para a carreira acadêmica, mas é agora socializar, preparar para a vida na nossa sociedade, desenvolver habilidades básicas para o exercício das mais diversas profissões, encontrar formas de superar eventuais limitações, descobrir talentos, despertar vocações e tantas coisas mais.
“ A democratização dos estudos trouxe para as escolas de ensino médio alunos que outrora ingressavam diretamente na vida ativa. Não há mais “herdeiros” e defensores da cultura escolar (...) No ensino médio os estabelecimentos recebem alunos muito heterogêneos no que tange à relação com o saber" idem pg 68.
Phillippe Perrenoud se detém na necessidade da escola atender a uma população de alunos com diferentes níveis de interesse. Trabalha o desejo de saber e a decisão de aprender como um tipo de fenômeno que se manifesta em diferentes intensidades, distribuídas na população seguindo o padrão de uma curva normal, como a altura ou o tamanho do pé. Isso quer dizer que haveria um punhado de alunos sem interesse em aprender, outro tanto de alunos muito interessados em aprender e uma maioria de alunos medianamente interessados.
Perrenoud considera que, ao receber toda a população de crianças e adolescentes, sem qualquer discriminação, a escola obrigatória não pode mais exigir o mesmo nível de interesse e a mesma disposição para aprender. Ela deve, portanto, modificar seu programa de ensino:
"Se a escola quisesse criar e manter o desejo de saber e a decisão de aprender, deveria diminuir consideravelmente seus programas, de maneira a integrar em um capítulo tudo que permitiria aos alunos dar-lhe sentido e ter vontade de se apropriar desse conhecimento” idem pg 69
Mas podemos entender tal fenômeno de uma forma diferente, ou seja, considerando que o interesse em aprender está distribuído, sobretudo em relação ao objeto da aprendizagem, ao que se quer aprender. Assim, quanto maior a diversidade de pessoas, maior a diversidade de alvos de interesse. Isso quer dizer que a variação se daria, sobretudo na direção do desejo de aprender, como variam as opções profissionais ou as preferências em relação a músicas ou filmes.
Se a escola passou a ser obrigatória para todos, ela deveria, então, oferecer um cardápio de assuntos mais variado, de forma a atender melhor à inevitável diversidade de interesses.
O que aconteceu com a nossa programação de ensino, foi o contrário: o leque de disciplinas obrigatórias diminuiu muito para favorecer um maior tempo de estudo para aquelas disciplinas consideradas mais nobres e cuja aprendizagem de uma grande parcela de alunos não tem atingido o esperado. Assim, para garantir que todos os alunos aprendam todo o programa de matemática e português, essas matérias ocupam tanto tempo do aluno que outras matérias como trabalhos manuais, canto, francês, foram abolidas do programa das escolas enquanto outras, como geografia, história, ciências, artes, tiveram reduzido o tempo de aulas.
Isso acontece porque ainda se considera a escola uma instituição com o objetivo de ensinar um determinado tipo de competências, umas poucas especialidades: uma instituição que tem por obrigação formar doutores, como era antes.
Um aluno com pouco interesse por atividades teóricas e pouco talento para desenvolver abstrações, demandará muito tempo e muito esforço para assimilar a resolução de uma equação de segundo grau. Este conteúdo, do ponto de vista da matemática ou do raciocínio abstrato, corresponde a uma atividade com alguma sofisticação, assim como, no caso da música, seria tocar uma sonata de Beethovan; também corresponde a uma competência necessária para um nível de especialização profissional, assim como, no caso do futebol, para ser jogador profissional de um time organizado, é necessária uma maior desenvoltura e domínio de bola. Resolver uma equação de segundo grau não será, necessariamente, obrigatório para o exercício de muitas especialidades. Há uma infinidade de pessoas bem sucedidas, consideradas expoentes da intelectualidade ou de outras formas de realização que atualmente, seriam incapazes de resolver uma equação de segundo grau. No entanto, a resolução de uma equação de segundo grau é uma competência obrigatória para finalizar a 8a série!
Na nossa forma de ver, a escola deveria diversificar MUITO a oferta de disciplinas, de formas ou estratégias de ensino, de objetivos. Deveria também oferecer um grande número de opções de cursos mais avançados, de forma que cada aluno tivesse a oportunidade de conhecer o básico em diferentes áreas e pudesse escolher se aprofundar na área que melhor lhe conviesse.
Terceira: ​a escola atual estaria oscilando entre dois objetivos aparentemente antagônicos - melhorar a qualidade de ensino e acolher todas as pessoas com suas variadas aptidões.
Por exemplo: a boa escola seria aquela que oferece um ensino bom, "puxado", que realmente prepara o aluno para vencer os desafios de uma sociedade e um mercado de trabalho cada vez mais exigentes? Esta escola valoriza um ensino que reprova todos aqueles alunos que não atingem um bom nível de evolução no espaço de cada ano. Reprovando, estimula a evasão. Ali, não haverá lugar para crianças que, trazidas pelo PETI, desembarcam na escola com 10 ou 11 anos, depois de estarem desde os 5 ou 6 anos trabalhando junto com suas famílias.
Ou a boa escola seria aquela que tem espaço para todos os alunos que a procuram, oferecendo um ambiente acolhedor, que valoriza seus progressos e seus esforços, dá mais tempo para os alunos aprenderem e vencerem suas barreiras, evita reprovações que possam desestimulá-los, etc.? Esta escola valoriza um ensino mais direcionado para as necessidades dos alunos e põe em segundo plano a excelência da própria produção que tradicionalmente se espera. Em geral, comparada ao primeiro tipo, será considerada uma escola fraca. Não prepara seus alunos para competirem num mercado de trabalho cada vez mais sofisticado.
Quando o governo impõe às escolas públicas o ciclo de 4 anos, os programas de recuperação paralela e progressão continuada, está optando pelo segundo tipo de atendimento escolar. Mas quando o governo impõe a aplicação do SARESP (SAEB, PISA, ...) e classifica as escolas de acordo com o número de crianças aprovadas nesse exame, está optando pelo primeiro tipo.
O que motivou ambas as iniciativas é válido de alguma forma. Pois, eticamente não podemos nos submeter a este dilema. Entretanto, a superação deste e de muitos dilemas que estão sendo colocados para a escola no nosso tempo, não é tarefa fácil e exige muita reflexão, muita criatividade, muita renúncia aos nossos padrões antigos, nossos preconceitos, etc.
Provavelmente haverá outras consequências das quais ainda não nos demos conta. Mas essas três já prenunciam o quanto e o tanto de transformações que a escola deverá sofrer.
Não será preciso modificar currículos, ampliar o leque de disciplinas, repensar exigências?
Não será preciso avaliar a avaliação, tanto aquela que se tem feito a respeito do aluno quanto a que se refere a professores, escolas e ao próprio sistema?
Não será preciso nos preparar para as novas tarefas que se impõem?
Pois é: não é à toa que estamos vivendo tanta turbulência nas escolas e no sistema educacional como um todo. Não é à toa que há tantas hesitações, tantas contradições, oportunidades e descaminhos, idas e voltas, ansiedades e angústias...
Evidente que não é fácil e nem mesmo saudável para o professor, principalmente aquele que trabalha nas escolas públicas: ele está no olho deste furacão!
Nossa experiência nos revelou o quanto esses professores das escolas públicas se sentem desamparados e pouco instrumentalizados dentro da sala de aula.
O quanto se embaraçam na tentativa de reproduzir os modelos de ensino que tiveram ou idealizaram e que, agora, não atingem o menor sucesso. O quanto se sentem perdidos na tentativa de compreender, assimilar e cumprir a enxurrada de orientações que recebem, sempre diversas e muitas vezes contraditórias.
Nós, da Associação Educacional Labor, acreditamos na importância fundamental de se trabalhar na formação e aperfeiçoamento dos professores para que eles possam se sentir mais conscientes, mais fortalecidos, mais capazes de se tornarem protagonistas dessas profundas mudanças que estão sendo cobradas das escolas.
Mas parece-nos que antes de qualquer trabalho de ensino, sua capacitação passa por ajudá-los a reconhecer:
1. a situação complicada e promissora em que se encontra a tarefa de educar no nosso tempo;
2. que as dificuldades que enfrentam não são apenas por falhas suas;
3. que não devem se sentir vítimas mas protagonistas do processo de mudança;
4. que o papel do professor é fundamental, digno e precioso. Uma arte que merece toda inspiração.
Percebemos que depois de se situarem com realismo dentro do contexto do seu trabalho e a sua missão e depois de se sentirem valorizados e respeitados, os professores desejam se aperfeiçoar e começam a valorizar seus alunos e a fazer deles seus parceiros. Então, a mudança é, mesmo, radical!
Cabe à nossa geração enfrentar o enorme desafio de reinventar a escola!


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