O horror antes de Auschwitz
Como os soldados de Hitler mataram milhares de judeus quando os campos de extermínio ainda não funcionavam
Carlos Graieb (retirado da Veja online)
Os campos de concentração nazistas, escreveu a filósofa alemã Hannah Arendt, foram "mundos dementes, mas que funcionavam". Dementes, porque devotados à mais completa degradação de seus prisioneiros, seguida por seu extermínio. Funcionais, porque operavam sob uma lógica industrial rigorosa: com suas câmaras de gás e fornos de cremação, eles produziam cadáveres em massa. Antes que as câmaras de gás fizessem suas primeiras vítimas, no começo de 1942, judeus já vinham sendo eliminados pelos nazistas de maneira sistemática, em regiões do Leste Europeu. Os assassinatos eram feitos a bala, e ficavam a cargo dos Einsatzgruppen – esquadrões especialmente destacados para essa tarefa. Um dos capítulos menos estudados da história do holocausto, o trabalho desses esquadrões é tema de um livro notável (e chocante) lançado agora nos Estados Unidos.
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Ele se chama Masters of Death (Mestres da Morte) e foi escrito pelo premiado historiador Richard Rhodes.
Sob as ordens de Heinrich Himmler, um dos mais fiéis seguidores de Hitler e poderoso comandante das SS, as forças nazistas de elite, os Einsatzgruppen entraram em atividade em junho de 1941. Seguindo a vanguarda do Exército, que invadira a Polônia, eles inicialmente tinham o papel de inviabilizar movimentos de resistência, eliminando políticos, clérigos, intelectuais e outros líderes locais. Um mês depois, contudo, suas incumbências se ampliaram e, segundo Rhodes, os Einsatzgruppen se tornaram os primeiros agentes do plano de Hitler de exterminar os judeus. "A decisão de matar os judeus do Leste, tomada no verão de 1941, responde à pergunta que confundiu os estudiosos do holocausto por anos: quando Hitler ordenou a Solução Final?", afirma o historiador.
Em dezoito meses de atividade, estima-se que os esquadrões de Himmler tenham eliminado cerca de 1 milhão de judeus na Polônia, na Rússia, na Estônia, na Ucrânia, na Lituânia, na Letônia e na Bielo-Rússia. "Quase toda vila nessas regiões tem um sítio de extermínio em suas proximidades", diz Rhodes. Para que matanças em tão grande escala pudessem ser realizadas, os nazistas reuniam grupos de judeus nas cidades e os conduziam para locais ermos, onde eles eram fuzilados em barrancos, charcos ou fossos cavados especialmente para receber os corpos. Como a queda desordenada das vítimas fazia com que as sepulturas coletivas se enchessem rapidamente, um dos mais altos oficiais dos Einsatzgruppen, Friedrich Jeckeln, desenvolveu o método das "latas de sardinhas". Um certo número de prisioneiros era trazido em fila e obrigado a se deitar de bruços no chão. Ele recebiam, então, tiros na nuca. O grupo seguinte deitava-se sobre os cadáveres, e assim sucessivamente, até que se erguessem pilhas altas – e regulares – de mortos. Numa das mais atrozes execuções desse tipo, 13.000 judeus sucumbiram num único dia. Eles caminharam 6 milhas até o local do extermínio. Lá, tiveram seus bens confiscados, suas roupas arrancadas e foram conduzidos, cinqüenta por vez, para três "latas de sardinhas". Apenas doze nazistas manejaram armas. "Quando a cartucheira de um dos assassinos se esvaziava, outro o substituía enquanto ele descansava", conta Rhodes. Como a primeira coluna de vítimas chegou às 9 da manhã e a matança continuou até as 5 da tarde, estima-se que nove pessoas foram mortas por minuto, em cada fosso. Em outras localidades, soldados nazistas fizeram experiências não apenas para dispor os cadáveres de maneira ordenada, mas também para dissolvê-los com o uso de produtos químicos, espalhados sobre as sepulturas quando muitas das vítimas ainda agonizavam.
Embora métodos como o desenvolvido por Jeckeln fossem eficientes, eles não eliminavam um problema sério para as forças nazistas: o stress psicológico dos que matavam velhos, mulheres e crianças. Sabe-se que existiram, entre os soldados e oficiais nazistas, homens que cumpriam essa tarefa com boa dose de prazer. Um testemunho transcrito por Rhodes fala de um soldado alemão que percorreu as ruas de Minsk, na Bielo-Rússia, cantarolando enquanto trazia uma criança empalada em sua baioneta. Um jovem oficial, Max Täubner, desenvolveu um comportamento tão selvagem nas execuções que acabou punido por seus superiores. Certa vez, Täubner prendeu dezenas de judeus em um porão, sem água nem comida. Quando já estavam enfraquecidos, o nazista os matou a pauladas. Em contrapartida, havia aqueles para quem o extermínio era um trabalho penoso. Isso, é claro, não serve como atenuante para as atrocidades cometidas. Como diz Rhodes, esses conflitos mentais são evidência de culpa: "Os homens dos Einsatzgruppen tinham plena consciência de que seus atos eram criminosos, ainda que a maior autoridade do Estado alemão os tivesse ordenado".
Não foram poucos os nazistas que sofreram colapsos nervosos depois de participar de massacres. Para atenuar essas dores, muita coisa foi tentada. Os soldados eram estimulados a se reunir e celebrar depois de uma execução. "De dia atiramos, à noite festejamos", tornou-se o mote de muitos deles. Rhodes relata uma ocasião em que um grupo de atiradores foi premiado com uma inesperada porção de morangos com creme depois de um dia de fuzilamentos. Uma das teses centrais de Mestres da Morte é que a perturbação vivida por nazistas durante essas execuções incentivou o surgimento de métodos mais impessoais de extermínio.
O próprio Himmler sentiu na carne o mal-estar que uma sessão de fuzilamentos podia causar. Em 15 de agosto de 1941, uma delas foi organizada para que ele assistisse. O chefe das SS não suportou a violência, dando claros sinais de náusea. Os biógrafos de Himmler são unânimes em identificar a covardia como uma de suas características marcantes, bem como um apego hipócrita aos chamados "sentimentos elevados". Depois de gemer e suar enquanto algumas centenas de judeus eram mortos à sua frente, ele não escondeu seu abatimento quando um dos oficiais que o acompanhavam desabafou: "Que tipo de seguidores estamos criando?". As mortes, contudo, não pararam. Pelo contrário. No início do outono, novas técnicas de execução em massa começaram a ser testadas: a dinamite e a asfixia por monóxido de carbono. Em setembro, um método utilizado anteriormente em pequena escala foi revivido e aperfeiçoado: caminhões passaram a servir como câmaras de gás ambulantes. No começo de 1942, as fornalhas dos campos de extermínio passaram a funcionar a pleno vapor. Essa foi a resposta de Himmler à pergunta de seu oficial.
http://veja.abril.com.br/100702/p_057.html
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