|
||||
CULTURA E
IDEOLOGIA
Cultura
e ideologia talvez sejam os conceitos mais amplos das ciências sociais, com
diferentes definições. Vamos examinar os significados e usos desses dois
conceitos de acordo com diferentes autores.
OS
SIGNIFICADOS DE CULTURA
O
emprego da palavra cultura, no cotidiano, é objeto de estudo de diversas
ciências sociais. Félix Guattari, pensador francês (1930-1992) interessado
nesse tema, reuniu os diferentes significados de "cultura" em três
grupos, por ele designados cultura-valor, cultura-alma coletiva e
cultura-mercadoria.
Cultura-valor
é o sentido mais antigo e aparece claramente na ideia de "cultivar o
espírito". É o que permite estabelecer a diferença entre quem tem cultura
e quem não tem ou determinar se o indivíduo pertence a um meio culto ou
inculto, definindo um julgamento de valor sobre essa situação. Nesse grupo
inclui-se o uso do termo para identificar, por exemplo, quem tem ou não cultura
clássica, artística ou científica.
O
segundo significado, designado cultura-alma coletiva, é sinônimo de
"civilização". Ele expressa a ideia de que todas as pessoas, grupos e
povos têm cultura e identidade cultural. Nessa acepção, pode-se falar de
cultura negra, cultura chinesa, cultura marginal, etc. Tal expressão presta-se
assim aos mais diversos usos por aqueles que querem dar um sentido para a ação
dos grupos aos quais pertencem, com a intenção de caracterizá-los ou identificá-los.
O
terceiro sentido, o de cultura-mercadoria, corresponde à "cultura de
massa". Ele não comporta julgamento de valor, como o primeiro significado,
nem delimitação de um território específico, como o segundo. Nessa concepção,
cultura compreende bens ou equipamentos, como os centros culturais, os cinemas,
as bibliotecas e as pessoas que trabalham nesses estabelecimentos, e conteúdos
teóricos e ideológicos de produtos, como filmes, discos e Iivros que estão à
disposição de quem quer e pode comprá-los, ou seja, que estão disponíveis no
mercado.
As três
concepções de cultura estão presentes em nosso dia-a-dia, marcando sempre uma
diferença bastante clara entre as pessoas - seja no sentido mais elitista
(entre as que têm e as que não têm uma cultura clássica e erudita, por
exemplo), seja no sentido de identificação com algum grupo específico, seja
ainda em relação à possibilidade de consumir bens culturais. Todas essas
concepções trazem uma carga valorativa, dividindo indivíduos, grupos e povos
entre os que têm e os que não têm cultura ou, mesmo, entre os que têm uma
cultura superior e os que têm uma cultura inferior.
CULTURA
SEGUNDO A ANTROPOLOGIA
O
conceito de cultura com frequência é vinculado à Antropologia, como se fosse
específico dessa área do conhecimento. Por isso, vamos verificar como os
antropólogos, partindo de uma visão universalista para uma visão
particularista, definiram esse conceito.
Uma das
primeiras definições de cultura apareceu na obra do antropólogo inglês Edward
B. Tylor (1832-1917). De acordo com esse autor, cultura é o conjunto complexo
de conhecimentos, crenças, arte, moral e direito, além de costumes e hábitos
adquiridos pelos indivíduos em uma sociedade. Trata-se de uma definição
universalista, ou seja, muito ampla, com a qual se procura expressar a
totalidade da vida social humana, a cultura universal.
Já o
antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942), que desenvolveu a maior parte de
seus trabalhos nos Estados Unidos, tinha uma visão particularista. Ele
pesquisou as diferentes formas culturais e demonstrou que as diferenças entre
os grupos e sociedades humanas eram culturais, e não biológicas. Por isso,
recusou qualquer generalização que não pudesse ser demonstrada por meio da pesquisa
concreta.
Bronislaw
Malinowski (1884-1942), antropólogo inglês, afirmava que, para fazer uma
análise objetiva, era necessário examinar as culturas em seu estado atual, sem
preocupações com suas origens. Concebia as culturas como sistemas funcionais e
equilibrados, formados por elementos interdependentes que lhes davam
características próprias, principalmente no tocante às necessidades básicas,
como alimento, proteção e reprodução. Por ser interdependentes, esses elementos
não poderiam ser examinados isoladamente.
Duas
antropólogas estadunidenses, Ruth Benedict (1887-1948) e Margareth Mead
(1901-1978), procuraram investigar as relações entre cultura e personalidade.
Benedict
desenvolveu o conceito de padrão cultural, destacando a prevalência de uma homogeneidade
e coerência em cada cultura. Em suas pesquisas, identificou dois tipos
culturais extremos; o apolínico, representado por indivíduos conformistas,
tranqüilos, solidários, respeitadores e comedidos na expressão de seus
sentimentos, e o dionisíaco, que reunia os ambiciosos, agressivos,
individualistas, com uma tendência ao exagero afetivo. De acordo com ela, entre
os apolínicos e os dionisíacos haveria tipos intermediários que mesclariam
algumas características dos dois tipos extremos.
Mead,
por sua vez, investigou o modo como os indivíduos recebiam os elementos de sua
cultura e a maneira como isso formava sua personalidade. Suas pesquisas tinham
como objeto as condições de socialização da personalidade feminina e da
masculina. Ao analisar os Arapesh, os Mundugumor e os Chambuli, três povos da
Nova Guiné, na Oceania, Mead percebeu diferenças significativas. Entre os
Arapesh não havia diferenciação entre homens e mulheres, pois ambos eram
educados para ser dóceis e sensíveis e para servir aos outros. Também entre os
Mundugumor não havia diferenciação: indivíduos de ambos os sexos eram treinados
para a agressividade, caracterizando-se por relações de rivalidade, e não de
afeição. Entre os Chambuli, finalmente, havia diferença entre homens e
mulheres, mas de modo distinto do padrão que conhecemos: a mulher era educada
para ser extrovertida, empreendedora, dinâmica e solidária com os membros de
seu sexo. Já os homens eram educados para ser sensíveis, preocupados com a
aparência e invejosos, o que os tornava inseguros. Isso resultava em uma
sociedade em que as mulheres detinham o poder econômico e garantiam o
necessário para a sustentação do grupo, ao passo que os homens se dedicavam às
atividades cerimoniais e estéticas.
Baseada
em seus achados, Mead afirmou que a diferença das personalidades não está
vinculada a características biológicas, como o sexo, mas à maneira como em cada
sociedade a cultura define a educação das crianças.
Para
Claude Lévi-Strauss, antropólogo que nasceu na Bélgica, mas desenvolveu a maior
parte de seu trabalho na França, a cultura deve ser considerada como um
conjunto de sistemas simbólicos, entre os quais se incluem a linguagem, as
regras matrimoniais, a arte, a ciência, a religião e as normas econômicas.
Esses sistemas se relacionam e influenciam a realidade social e física das
diferentes sociedades.
A
grande preocupação de Lévi-Strauss foi analisar o que era comum e constante em
todas as sociedades, ou seja, as regras universais e os elementos
indispensáveis para a vida social. Um desses elementos seria a proibição do
incesto (relações sexuais entre irmãos ou entre pais e filhos), presente em
todas as sociedades. Partindo dessa preocupação, ele desenvolveu amplos estudos
sobre os mitos, demonstrando que os elementos essenciais da maioria deles se
encontram em todas as sociedades ditas primitivas.
CONVIVÊNCIA
COM A DIFERENÇA: O ETNOCENTRISMO
Ter uma
visão de mundo, avaliar determinado assunto de certa ótica, nascer e conviver
em uma classe social, pertencer a uma etnia, ser homem ou mulher são algumas
das condições que nos levam a pensar há diversidade humana, cultural e
ideológica, e, consequentemente, na alteridade, isto é, no outro ser humano,
que é igual a cada um de nós e, ao mesmo tempo, diferente.
Observa-se,
no entanto, grande dificuldade na aceitação das diversidades em uma sociedade
ou entre sociedades diferentes, pois os seres humanos tendem a tomar seu grupo
ou sociedade como medida para avaliar os demais. Em outras palavras, cada grupo
ou sociedade considera-se superior e olha com desprezo e desdém os outros,
tidos como estranhos ou estrangeiros. Para designar essa tendência, o sociólogo
estadunidense William G. Summer (1840-1910) criou em 1906 o termo
etnocentrismo.
Manifestações
de etnocentrismo podem ser facilmente observadas em nosso cotidiano. Quando
lemos notícias sobre crises enfrentadas por povos de outros países, por
exemplo, com frequência estabelecemos comparações entre a cultura deles e a
nossa, considerando a nossa superior, principalmente se as diferenças forem muito
grandes. Na história não faltam exemplos desse tipo de comparação: na
Antiguidade os romanos chamavam de "bárbaros" aqueles que não eram de
sua cultura; no Renascimento, após os contatos com culturas diversas
propiciados pela expansão marítima, os europeus passaram a chamar os povos
americanos de "selvagens", e assim por diante.
O
etnocentrismo foi um dos responsáveis pela geração de intolerância e
preconceito - cultural, religioso, étnico e político -, assumindo diferentes
expressões no decorrer da história. Em nossos dias ele se manifesta, por
exemplo, na ideologia racista da supremacia do branco sobre o negro ou de uma
etnia sobre as outras. Manifesta-se, também, num mundo que é globalizado, na
ideia de que a cultura ocidental é superior, e os povos de culturas diferentes
devem assumi-la, modificando suas crenças normais e valores. Essa forma de
etnocentrismo pode levar a consequências sérias em nossa convivência com os
outros e nas relações entre os povos.
TROCAS
CULTURAIS E CULTURAS HÍBRIDAS
No
mundo globalizado em que vivemos, tendo o nosso cotidiano invadido por
situações e informações provenientes dos mais diversos lugares, é possível
afirmar que haja uma cultura "pura"? Até que ponto chegou o processo
de mundialização da cultura?
Em seu
livro Culturas híbridas, o pensador argentino Néstor García Canclini analisa
essas questões. Lançando um olhar sobre a história, ele declara que, até o
século XIX, as relações culturais ocorriam entre os grupos próximos, familiares
e vizinhos, com poucos contatos externos. Os padrões culturais resultavam de
tradições transmitidas oralmente e por meio de livros, quando alguém os tinha
em casa, porque bibliotecas públicas ou mesmo escolares eram raras. Os valores
nacionais eram quase uma abstração, pois praticamente não havia a consciência
de uma escala tão ampla.
Já no
século XIX e início do século XX, cresceu a possibilidade de trocas culturais,
pois houve um grande desenvolvimento dos meios de transporte, do sistema de
correios, da telefonia, do rádio e do cinema. As pessoas passaram a ter contato
com situações e culturas diferentes. As trocas culturais efetivadas a partir de
então ampliaram as referências para avaliar o passado, o presente e o futuro. O
mundo não era mais apenas o local em que um grupo vivia. Tornou-se muito mais
amplo, assim como as possibilidades culturais. A cultura nacional passou a ter
determinada constituição e os valores e bens culturais de vários povos ou
países cruzaram-se, com a consequente ampliação das influências recíprocas.
No
decorrer do século XX, com o desenvolvimento das tecnologias de comunicação, o
cinema; a televisão e a internet tornaram-se instrumentos de trocas culturais
intensas, e os contatos individuais e sociais passaram a ter não um, mas
múltiplos pontos de origem. Desde então as trocas culturais são feitas em tal
quantidade que não se sabe mais a origem delas. Elementos de culturas antes
pouco conhecidas aparecem com força em muitos lugares, ao mesmo tempo. As
expressões culturais dos países centrais, como os Estados Unidos e algumas
nações da Europa, proliferam-se em todo o mundo. As culturas de países
distantes ou próximos se mesclam a essas expressões, construindo culturas
híbridas que não podem ser mais caracterizadas como de um país, mas como parte
de uma imensa cultura mundial.
Isso
não significa que as expressões representativas de grupos, regiões ou até de
nações tenham desaparecido. Elas continuam presentes e ativas, mas coexistem
com essas culturas híbridas que atingem o cotidiano das pessoas por meios
diversos, como a música, a pintura, o cinema e a literatura, normalmente
fomentadas pela concentração crescente dos meios de comunicação.
Alguém
poderia perguntar: Por que essas formas particulares, grupais, regionais ou
nacionais deveriam existir no universo cultural mundial, já que vivemos num
mundo globalizado? Em seu livro Artes sob pressão: promovendo a diversidade
cultural na era da globalização, o sociólogo holandês Joost Smiers responde que
assim haveria a possibilidade de uma diversidade cultural ainda maior e mais
significativa: haveria uma democracia cultural de fato à disposição de todos.
Em suas palavras: “A questão central é a dominação cultural, e isso precisa ser
discutido com propostas alternativas para preservar e promover a diversidade no
mundo”.
CULTURA
ERUDITA E CULTURA POPULAR
A
separação entre cultura popular e erudita, com a atribuição de maior valor à
segunda, está relacionada à divisão da sociedade em classes, ou seja, é
resultado e manifestação das diferenças sociais. Há, de acordo com essa classificação,
uma cultura identificada com os segmentos populares e outra, superior,
identificada com as elites.
A
cultura erudita abrangeria expressões artísticas como a música clássica de
padrão europeu, as artes plásticas - escultura e pintura -, o teatro e a
literatura de cunho universal. Esses produtos culturais, como qualquer
mercadoria, podem ser comprados e, em alguns casos, até deixados de herança
como bens físicos:
A
chamada cultura popular encontra expressão nos mitos e contos, danças, música -
de sertaneja a cabocla -, artesanato rústico de cerâmica ou de madeira e
pintura; corresponde, enfim, à manifestação genuína de um povo. Mas não se
restringe ao que é tradicionalmente produzido no meio rural. Inclui também
expressões urbanas recentes, como os grafites, o hip-hop e os sincretismos
musicais oriundos do interior ou das grandes cidades, o que demonstra haver
constante criação e recriação no universo cultural de base popular. Nesse
universo quem cria é o povo, nas condições possíveis. A palavra folclore (do
inglês folklore, junção de folk, "povo", e lore, "saber")
significa "discurso do povo", "sabedoria do povo" ou
"conhecimento do povo".
Para
examinar criticamente essa diferenciação, voltemos ao termo cultura, agora
segundo a análise do pensador brasileiro Alfredo Bosi. De acordo com Bosi, não
há no grego uma palavra específica para cultura; há, sim, uma palavra que se
aproxima desse conceito, que é Paideia, "aquilo que se ensina à
criança", "aquilo que deve ser trabalhado na criança até que ela se transforme
em adulta". A palavra cultura vem do latim e designa "o ato de
cultivar a terra", "de cuidar do que se planta", ou seja, é o
trabalho de preparar o solo, semear e fazer tudo para que uma planta cresça e
dê frutos.
Cultura
está assim vinculada ao ato de trabalhar, a determinada ação, seja a de ensinar
uma criança, seja a de cuidar de um plantio. Se pensarmos nesse sentido
original, todos têm acesso à cultura, pois todos podem trabalhar. Para escrever
um romance, é preciso trabalhar uma narrativa; para fazer uma toalha de renda,
uma música, uma mesa de madeira ou uma peça de mármore, é necessário trabalhar.
Para Bosi, isso é cultura. E é por essa razão que os produtos culturais gerados
pelo trabalho chamam-se obras, que vem de opus, derivado do verbo operar, ou
seja, é o processo de fazer, de criar algo.
Se uma
pessoa compra um livro, um disco, um quadro ou uma escultura, vai ao teatro ou
a exposições, adquire, mas não produz cultura, ou seja, ela pode possuir ou ter
acesso aos bens culturais gerados pelo trabalho, sem produzi-las. Esses bens
servem para proporcionar deleite e prazer, e são usados por algumas pessoas
para afirmar e mostrar que "possuem cultura", quando são apenas
consumidoras de uma mercadoria como qualquer outra. Não ter acesso a esses bens
não significa, portanto, não ter cultura.
Bosi
chama a atenção para o fato de haver em muitos países órgãos públicos que
procuram desenvolver ações para "conservar a cultura popular
original", com certo receio de que ela não resista ao avanço da indústria
cultural. Ora, os produtos culturais são criados em determinadas condições,
remodelando-se continuamente, como ocorre com as festas, as músicas, as danças,
o artesanato e outras tantas manifestações. Nesse sentido, é necessário
analisar a cultura como processo, como ato de trabalho no tempo que não se
extingue. A criação cultural não morre com seus autores, e basta que o povo
exista para que ela sobreviva. Entenda-se aqui povo não como uma massa amorfa e
homogênea de oprimidos submissos, mas como um conjunto de indivíduos, com
ideias próprias e capacidade criativa e, produtiva, que resiste muitas vezes
silenciosamente, sobretudo por meio da produção cultural, como seus cantos e
festas.
Para
Bosi, a cultura é alguma coisa que se faz, e não apenas um produto que se
adquire. É por isso que não tem sentido comparar cultura popular com cultura
erudita. Quando afirmamos que ter cultura significa ser superior e não ter
cultura significa ser inferior, utilizamos a condição de posse de cultura como
elemento para diferenciação social e imposição de uma superioridade que não
existe. Isso é ideologia.
A
IDEOLOGIA, SUAS ORIGENS E PERSPECTIVAS
A ideia
de cultura nasce da análise das sociedades antigas, mas o conceito de ideologia
é um produto essencialmente moderno, pois antes da Idade Moderna as explicações
da realidade eram dadas pelos mitos ou pelo pensamento religioso.
Uma das
primeiras ideias sobre ideologia foi expressa por Francis Bacon (1561-1626), em
seu livro Novum organum (1620). Ele não utilizava o termo ideologia, mas, ao
recomendar um estudo baseado na observação, declarava que, até aquele momento,
o entendimento da verdade estava obscurecido por ídolos, ou seja, por ideias
erradas e irracionais.
O termo
ideologia foi utilizado inicialmente pelo pensador francês Destutt de Tracy
(1754-1836), em seu livro Elementos de ideologia (1801), no sentido de
"ciência da gênese das ideias". Tracy procurou elaborar uma
explicação para os fenômenos sensíveis que interferem na formação das ideias,
ou seja, a vontade, a razão, a percepção e a memória.
Um
segundo sentido de ideologia, o de "ideia falsa" ou
"ilusão", foi utilizado por Napoleão Bonaparte num discurso perante o
Conselho de Estado, em 1812. Napoleão afirmou nesse discurso que seus
adversários, que questionavam e perturbavam a sua ação governamental, eram
apenas metafísicos, pois o que pensavam não tinha conexão com o que estava acontecendo
na realidade, na história.
Auguste
Comte (1798-1857), em seu Curso de filosofia positiva (1830-1842), retomou o
sentido de ideologia utilizado por Tracy - o de estudo da formação das ideias,
partindo das sensações (relação do corpo com o meio) - e acrescentou outro, o
de conjunto de ideias de determinada época.
Karl
Marx também não apresentou uma única definição de ideologia. O livro A
ideologia alemã (1846), ele se referiu à ideologia como um sistema elaborado de
representações e de ideias que correspondem a formas de consciência que os
homens têm em determinada época. Ele afirmou ainda que as ideias dominantes em
qualquer época são sempre as de quem domina a vida material e, portanto, a vida
intelectual.
Marx
desenvolveu a concepção de que a ideologia é a inversão da realidade, no
sentido de reflexo, como na câmara fotográfica, em que a imagem aparece
"invertida". Contrapondo-se a muitos autores que acreditavam que as
ideias transformavam e definiam a realidade, Marx afirmava que a existência
social condicionava a consciência dos indivíduos sobre a situação em que
viviam. Assim, para Marx, as ideologias não são meras ilusões e aparências - e
muito menos o fundamento da história -, mas são uma realidade objetiva e
atuante.
No
mesmo livro de Marx, pode-se encontrar a explicação de que a ideologia é
resultante da divisão entre o trabalho manual e o intelectual. O trabalho
intelectual esteve nas mãos da classe dominante e, assim, à medida que pôde
"emancipar-se" da realidade concreta em que foi produzido e se
transformar em teoria pura, pôde também transformar-se em teoria geral para
todas as sociedades, sem levar em conta a história de cada uma delas. Essa
emancipação das ideias é muito bem exemplificada por Marx. Ele se refere a um
indivíduo que afirmava que os homens só se afogavam porque estavam possuídos
pela ideia de gravidade. Se abandonassem essa ideia, estariam livres de
qualquer afogamento. Marx não diz se esse homem foi bem-sucedido na luta contra
a ilusão de gravidade nem se tentou testar sua teoria.
Émile
Durkheim, ao discutir a questão da objetividade científica em seu livro As
regras do método sociológico (1895), afirma que, para ser o mais preciso
possível, o cientista deve deixar de lado todas as pré-noções, as noções
vulgares, as ideias antigas e pré-científicas e as ideias subjetivas. São essas
ideias que ele entende por ideologia, ou seja, o contrário de ciência.
Karl
Mannheim (1893-1947) talvez seja o sociólogo depois de Marx que mais tenha
influenciado a discussão sobre ideologia. No livro Ideologia e utopia (1929),
ele conceitua duas formas de ideologia: a particular e a total. A particular
corresponde à ocultação da realidade, incluindo mentiras conscientes e
ocultamentos subconscientes e inconscientes, que provocam enganos ou mesmo autoenganos.
A ideologia total é a visão de mundo (cosmovisão) de uma classe social ou de
uma época. Nesse caso, não há ocultamento ou engano, apenas a reprodução das
ideias próprias de uma classe ou ideias gerais que permeiam toda a sociedade.
Para
Mannheim, as ideologias são sempre conservadoras, pois expressam o pensamento
das classes dominantes, que visam à estabilização da ordem. Em contraposição,
ele chama de utopia o que pensam as classes oprimidas, que buscam a
transformação.
A
IDEOLOGIA E O GRUPO SOCIAL
Todos
nós participamos de certos grupos de ideias. São espécies de
"bolsões" ideológicos, onde há pessoas que dizem coisas em que nós
também acreditamos, pelas quais também lutamos, que têm opiniões muito
parecidas com as nossas. Há alguns autores que dizem que na verdade nós não
falamos de fato o que acreditamos dizer, haveria certos mecanismos, certas
estruturas que "falariam por nós". Ou seja, quando damos nossas
opiniões, quando participamos de algum acontecimento, de alguma manifestação,
temos muito pouco de nosso aí, reproduzimos conceitos que já circulam nesses
grupos.
Ideologia
não é, portanto, um fato individual, não atua inclusive de forma consciente na
maioria dos casos. Quando pretendemos alguma coisa, quando defendemos uma ideia
um interesse, uma aspiração, uma vontade, um desejo, normalmente não sabemos,
não temos consciência de que isso ocorre dentro de um esquema maior, do qual
somos apenas representantes - repetimos conceitos e vontades, que já existiam
anteriormente.
Depois
de Mannheim, muitos outros pensadores estudaram e utilizaram o conceito de
ideologia, mas todos eles tiveram como referência os autores que citamos.
A
IDEOLOGIA NO COTIDIANO
Em
nosso cotidiano, ao nos relacionarmos com as outras pessoas, exprimimos por
meio de ações, palavras e sentimentos uma série de elementos ideológicos. Como
vivemos em uma sociedade capitalista, a lógica que a estrutura, a da
mercadoria, permeia todas as nossas relações, sejam elas econômicas, políticas,
sociais ou sentimentais. Podemos dizer que há um modo capitalista de viver, de
sentir e de pensar.
A
expressão da ideologia na sociedade capitalista pressupõe a elaboração de um
discurso homogêneo, pretensamente universal, que, buscando identificar a
realidade social com o que as classes dominantes pensam sobre ela, oculta as
contradições existentes e silencia outros discursos e representações
contrárias.
Esse
discurso não leva em conta a história e destaca categorias genéricas - a
família ou a juventude, por exemplo -, passando, em cada caso, uma ideia de
unidade, de uniformidade. Ora, existem famílias com constituições diferentes e
em situações econômicas e sociais diversas. Há jovens que vivem nas periferias
das cidades ou na zona rural, enfrentando dificuldades, bem como jovens que
moram em bairros luxuosos ou condomínios fechados, desfrutando de privilegiada
situação econômica ou educacional. Portanto, não existe a família e a
juventude, mas famílias e jovens diversos, cada qual com sua história.
Outra
manifestação ideológica na sociedade capitalista é a ideia de que vivemos em
uma comunidade sem muitos conflitos e contradições. As expressões mais claras
disso são as concepções de nação ou de região como determinado país ou dado
espaço geográfico. Essas concepções passam a visão de que há uma comunidade de
interesses e propósitos partilhados por todos os que vivem num país ou num
espaço específico. Ficam assim obscurecidas as diferenças sociais, econômicas e
culturais, os conflitos entre os vários grupos e classes, enfatizando-se uma
unidade que não existe. Um exemplo disso é a atribuição de determinadas
características a toda uma região que tem em seu interior uma diversidade muito
grande.
Mas
existem outras formas ideológicas que são desenvolvidas sem muito alarde e que
penetram nosso cotidiano. Uma delas é a ideia de felicidade. Felicidade, para
muitos, é um estado relacionado ao amor, mas também significa estabilidade
financeira e profissional, bem-estar existencial e material. É um conjunto de
situações, mas normalmente a mais focalizada é a amorosa. E os filmes, as
novelas, as revistas, apesar de todas as condições adversas que um indivíduo
possa enfrentar, estão sempre reforçando o lema: "o amor vence todas as
dificuldades".
Talvez
a maior de todas as expressões ideológicas que encontramos em nosso cotidiano
seja a ideia de que o conhecimento científico é verdade inquestionável. Muitas
pessoas podem não acreditar em uma explicação oferecida por campos do
conhecimento que não são considerados científicos, mas basta dizer que se trata
de resultado de pesquisa ou informação de um cientista para que a tomem como
verdade e passem a orientar suas práticas cotidianas por ela. Isso aparece
principalmente quando as informações e notícias são veiculadas pelos meios de
comunicação e se referem à saúde. Da busca do sentido da vida às possibilidades
de sucesso, a ciência é vista como uma grande solução para todos os problemas,
males e enigmas.
Ora,
nada está mais distante do conhecimento científico do que a ideia de verdade
absoluta e a pretensão de explicar todas as coisas. A ciência nasceu e se
desenvolveu questionando as explicações dadas a situações e fenômenos, e
continua se desenvolvendo com base no questionamento de seus próprios
resultados. O pensamento científico é histórico e tem sua validade temporária,
sendo a dúvida seu valor maior.
Mas o
conhecimento científico, quando analisado da perspectiva de um pensamento
hegemônico ocidental, torna-se colonialista, pois o que é particular
(ocidental) se universaliza e se transforma em um paradigma que nega outras
formas de explicar e conhecer o mundo. Assim, desqualifica outras culturas e
saberes, tidos como inferiores e exóticos, como o conhecimento das civilizações
ameríndias, orientais e árabe.
EXERCÍCIOS:
O CULTO
AO SUCESSO
“Seja
uma pessoa de sucesso!” Quantas vezes ouvimos essa afirmação nos últimos
tempos? A maioria das propagandas da sociedade atual leva-nos a acreditar que
só existe o caminho da vitória.
Devemos
sempre ser vencedores, jamais vencidos; para isso é preciso ter sempre a melhor
performance, seja corporal, seja intelectual. Ou temos um belo corpo ou um
currículo composto somente de vitórias. Quem estiver fora desse conceito é
considerado perdedor, uma pessoa que não corresponde às expectativas sociais de
sucesso e, portanto, não merece estar entre os vencedores. No Japão, por
exemplo, alguns jovens que não conseguem aprovação na escola ou na
universidade, sentindo-se perdedores, se suicidam.
O culto
ao sucesso afeta desde cedo a vida das crianças, que acabam se tornando
"pequenos adultos superocupados". Na ânsia de fabricar futuros
vencedores, os pais inscrevem os filhos em toda sorte de atividade - além da
escola formal -, pois estes precisam estar preparados para o sucesso. As
crianças, então, deixam de brincar e passam a ter uma agenda com atividades
como inglês, informática, natação, judô, música..., tudo ao mesmo tempo.
Na
juventude e na idade adulta, o culto à performance continua de várias formas.
Cuidar do corpo, por exemplo, deixa de ser uma questão de saúde e bem-estar e
passa a ser um princípio exclusivo da estética. É comum vermos academias
lotadas de pessoas à procura da tão sonhada performance. Essa busca leva alguns
jovens ao absurdo de tomar remédios indicados para bois e cavalos, buscando
aumento da massa muscular. As jovens querem ter o padrão de beleza mostrado na
mídia, mesmo que isso signifique ficar sem comer e debilitar-se fisicamente. É
comum ver os garotos alardeando seu desempenho sexual, mesmo que para isso usem
medicamentos do tipo Viagra para demonstrar sua (im)potência.
O
CURRÍCULO “VITAMINADO”
Você já
deve estar pensando em fazer o seu curriculum vitae e sabe o que deverá incluir
nele. Ora, nós só colocamos aquilo que deu certo em nossa carreira. O documento
que registra nossa passagem pela vida produtiva foi bem analisado por Leandro
Konder, filósofo brasileiro, em um artigo intitulado "Curriculum Mortis e
a reabilitação da autocrítica". Nesse artigo, Konder diz que o curriculum
vitae é a ponta do iceberg de nossa visão triunfalista da vida, pois nele só
colocamos aquilo que consideramos um sucesso em nossa carreira. Em suas
palavras, "o curriculum vitae é o elemento mais ostensivo de uma ideologia
que nos envolve e nos educa nos princípios do mercado capitalista; é a
expressão de uma ideologia que inculca nas nossas cabeças aquela mentalidade de
cavalo de corrida... O que aconteceu de errado, os tropeços, as quedas e os
fracassos não aparecem nele, quando na maioria das vezes essas são a maior
parte das ocorrências de nosso viver".
Por
isso, o filósofo propõe que, com o curriculum vitae, façamos também o nosso
curriculum mortis, no qual registremos tudo o que não deu certo. Será uma
maneira de fazer autocrítica: o primeiro passo para desenvolver a capacidade de
criticar e ser criticado e, ainda, ampliar a autoestima.
1- Como considerar o culto ao sucesso
pessoal e a necessidade de desenvolver um curriculum vitae expressivo em um
país como o nosso, com tantas desigualdades sociais e com tão poucas
possibilidades de a maioria da população chegar a um curso universitário e, quando
isso acontece, conseguir um emprego compatível com o nível de conhecimento
adquirido?
2- Dê exemplos de coisas fundamentais em
nossa vida que não se resumem à performance e ao sucesso.
3- Como seria o seu curriculum mortis, ou
seja, a relação do que não deu certo em sua vida?
MESCLANDO
CULTURA E IDEOLOGIA
Vivemos
num mundo de comunicações, uma realidade que faz parte da nossa vida desde
pequenos: cotidianamente, entre outras atividades, vemos televisão, fazemos
pesquisas na internet, contatamos amigos por e-mail, MSN ou sites de
relacionamento, ouvimos música em fones de ouvido enquanto andamos nas ruas,
vemos filmes e propagandas, lemos jornais e revistas, escutamos rádio. Estamos
mergulhados tanto na cultura como na ideologia. Vamos tentar entender essa realidade
à luz da Sociologia.
DOMINAÇÃO
E CONTROLE
Ao
analisar a cultura e a ideologia, vários autores procuram demonstrar que não se
podem utilizar esses dois conceitos separadamente, pois há uma profunda relação
entre eles, sobretudo no que diz respeito ao processo de dominação nas
sociedades capitalistas.
O
pensador italiano Antônio Gramsci (1891-1937) analisa essa questão com base no
conceito de hegemonia (palavra de origem grega que significa “supremacia”,
“preponderância”) e no que ele chama de aparelhos de hegemonia.
Por
hegemonia pode-se entender o processo pelo qual uma classe dominante consegue
fazer que o seu projeto seja aceito pelos dominados, desarticulando a visão de
mundo autônoma de cada grupo potencialmente adversário. Isso é feito por meio
dos aparelhos de hegemonia, que são práticas intelectuais e organizações no
interior do Estado ou fora dele (livros, jornais, escolas, música, teatro,
etc.). Nesse sentido, cada relação de hegemonia é sempre pedagógica, pois
envolve uma prática de convencimento, de ensino e aprendizagem.
Para
Gramsci, uma classe se torna hegemônica quando, além do poder coercitivo e
policial, Utiliza a persuasão, o consenso, que é desenvolvido mediante um
sistema de ideias muito bem elaborado por intelectuais a serviço do poder, para
convencer a maioria das pessoas, até as das classes dominadas. Por esse
processo, cria-se uma “cultura dominante efetiva”, que deve penetrar no senso
comum de um povo, com o objetivo de demonstrar que a forma como aquele que
domina vê o mundo é a única possível.
A
ideologia não é o lugar da ilusão e da mistificação, mas o espaço da dominação,
que não se estabelece somente com o uso legítimo da força pelo Estado, mas
também pela direção moral e intelectual da sociedade como um todo, Utilizando
os elementos culturais de cada povo.
Mas
Gramsci aponta também a possibilidade de haver um processo de contra hegemonia,
desenvolvido por intelectuais orgânicos, vinculados à classe trabalhadora, na
defesa de seus interesses. Contrapondo-se à inculcação dos ideais burgueses por
meio da escola, dos meios de comunicação de massa, etc. eles combatem nessas
mesmas frentes, defendendo outra forma de “pensar, agir e sentir” na sociedade
em que vivem.
O
sociólogo francês Pierre Bourdieu desenvolveu o conceito de violência simbólica
para identificar formas culturais que impõem e fazem que aceitemos como normal,
como verdade que sempre existiu e não pode ser questionada, um conjunto de
regras não escritas nem ditas. Ele usa a palavra doxa para designar esse tipo
de pensamento e prática social estável, tradicional, em que o poder aparece
como natural.
Dessa
ideia nasce o que Bourdieu define como a naturalização da história, condição em
que os fatos sociais, independentemente de ser bons ou ruins, passam por
naturais e tornam-se uma “verdade” para todos. Um exemplo evidente é a
dominação masculina, vista em nossa sociedade como algo “natural”, já que as
mulheres são “naturalmente” mais fracas e sensíveis e, portanto, devem se
submeter aos homens. E todos aceitam essa ideia e dizem que” isso foi, é e será
sempre assim”.
Bourdieu
declara que é pela cultura que os dominantes garantem o controle ideológico,
desenvolvendo uma prática cuja finalidade é manter o distanciamento entre as
classes sociais. Assim, existem práticas sociais e culturais que distinguem
quem é de uma classe ou de outra: os “cultos” têm conhecimentos científicos,
artísticos e literários que os opõem aos “incultos”. Isso é resultado de uma
imposição cultural (violência simbólica) que define o que é “ter cultura”.
A
violência simbólica ocorre de modo claro no processo educacional. Quando
entramos na escola, em seus diversos níveis, devemos obedecer sempre a um
conjunto de regras e absorver um conjunto de saberes predeterminados, aceitos
como o que se deve ensinar. Essas regras e esses saberes não são questionados e
normalmente não se pergunta quem os definiu.
Theodor
Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), pensadores alemães, procuraram
analisar a relação entre cultura e ideologia com base no conceito de indústria
cultural. Apresentaram esse conceito em 1947, no texto A indústria cultural: o
esclarecimento como mistificação das massas. Nele, afirmavam que o conceito de
indústria cultural permitia explicar o fenômeno da exploração comercial e a
vulgarização da cultura, como também a ideologia da dominação. A preocupação
básica era com a emergência de empresas interessadas na produção em massa de
bens culturais, como qualquer mercadoria (roupas, automóveis, sabonetes, etc.),
visando exclusivamente ao consumo, tendo como fundamentos a lucratividade e a
adesão incondicional ao sistema dominante.
Adorno
e Horkheimer apontaram a possibilidade de homogeneização das pessoas, grupos e
classes sociais; esse processo atingiria todas as classes, que seriam seduzidas
pela indústria cultural, pois esta coloca a felicidade imediatamente nas mãos
dos consumidores mediante a compra de alguma mercadoria ou produto cultural.
Cria-se assim uma subjetividade uniforme e, por isso, massificada.
Nos
mais diversos filmes de ação, somos tranquilizados com a promessa de que o
vilão terá um castigo merecido. Tanto nos sucessos musicais quanto nos filmes,
a vida parece dizer que tem sempre as mesmas tonalidades e que devemos nos
habituar a seguir os compassos previamente marcados. Dessa forma, sentimo-nos
integrados numa sociedade imaginária, sem conflitos e sem desigualdades.
A
diversão, nesse sentido, é sempre alienante, conduz à resignação e em nenhum
momento nos instiga a refletir sobre a sociedade em que vivemos. A indústria
cultural transforma as atividades de lazer em um prolongamento do trabalho,
promete ao trabalhador uma fuga do cotidiano e lhe oferece, de maneira
ilusória, esse mesmo cotidiano como paraíso. Por meio da sedução e do
convencimento, a indústria cultural vende produtos que devem agradar ao
público, não para fazê-lo pensar com informações novas que o perturbem, mas
para propiciar-lhe uma fuga da realidade. Tal fuga, segundo Adorno, faz que o
indivíduo se aliene, para poder continuar aceitando com um “tudo bem” a exploração
do sistema capitalista.
Os
meios de comunicação e a vida cotidiana
Entre
todos os meios de comunicação, a televisão é o mais forte agente de informações
e de entretenimento, embora pesquisas recentes já demonstrem que ela pode ser
desbancada pela internet na massificação da informação. Diante disso, pode-se
declarar que a análise de Adorno e Horkheimer, desenvolvida em 1947, está
ultrapassada ou mantém seu poder de explicação?
Observando
que o que mudou foi a tecnologia dos meios de comunicação, as formas de
mistificação que adotam e a apresentação e embalagem dos produtos, podemos
afirmar que o conceito de indústria cultural conserva o mesmo poder de
explicação. Os produtos culturais aparecem com invólucros cada vez mais
esplendorosos, pois cada dia são maiores as exigências para prender a atenção
dos indivíduos. Produtos de baixa qualidade têm a oferta justificada pelo
argumento de que atendem às necessidades das pessoas que desejam apenas
entretenimento e diversão, não estando preocupadas com o caráter educativo ou
cultural do que consomem. Mas isso é falso, pois esses produtos são oferecidos
tendo em vista as necessidades das próprias empresas, cujo objetivo é
unicamente o lucro.
O
“mundo maravilhoso” e sem diferenças está presente nos programas de televisão,
que mostram guerras, mortes, miséria e opressão de outros povos, nunca do
nosso, e demonstram que isso sempre foi assim, e, portanto, é inútil e
desnecessário melhorar o que aí está. Preocupado com o que a televisão vem
fazendo em termos culturais, o cientista social italiano Giovanni Sartori, em
seu livro Homo videns (2001), reflete sobre esse meio de comunicação.
Retomando
a história das comunicações, ele destaca o fato de que as civilizações se
desenvolveram quando a transmissão de conhecimento passou da forma oral para a
escrita. Até o surgimento da imprensa, em 1440, a transmissão de conhecimentos
era muito restrita. Foi com Johannes Gutenberg e a invenção da imprensa que
ocorreu o grande salto tecnológico que permitiu a muitas pessoas o acesso à
cultura escrita.
No
século XIX, além do desenvolvimento da imprensa, com jornais e livros, outros
avanços tecnológicos permitiram a diversificação das comunicações. Foram então
inventados o telégrafo e o telefone, que permitiram a comunicação oral e escrita
entre pessoas a grandes distâncias. Com o rádio, apareceu o primeiro meio capaz
de eliminar as distâncias em termos sociais mais amplos. Mas todos esses meios
mantinham-se no universo da comunicação puramente lingüística, escrita ou
falada.
Já no
final do século XIX e início do século XX apareceu o cinema, primeiro mudo e
depois falado, inaugurando um outro universo de comunicação, no qual a imagem
se tornou fundamental. A televisão, nascida em meados do século XX, como o
próprio nome indica (televisão = “ver de longe”), criou um elemento
completamente novo, em que o ver tem preponderância sobre o ouvir. A voz dos
apresentadores é secundária, pois é subordinada às imagens que comenta e
analisa. As imagens contam mais do que as palavras. Nisso o indivíduo volta à
sua condição animal.
A
televisão nos dá a possibilidade de ver tudo sem sair do universo local. Assim,
para Sartori, além de um meio de comunicação, a televisão é um elemento que
participa da formação das pessoas e pode gerar um novo tipo de ser humano. Essa
afirmação está baseada na observação de que as crianças, em várias partes do
mundo, passam muitas horas diárias vendo televisão antes de saber ler e
escrever. Isso dá margem a um novo tipo de formação, centralizado na capacidade
de ver.
Se o que
nos torna diferentes dos outros animais é nossa capacidade de abstração, a
televisão, para Sartori, “inverte o progredir do sensível para o inteligível,
virando-o em um piscar de olhos para um retorno ao puro ver. Na realidade, a
televisão produz imagens e apaga os conceitos; mas desse modo atrofia a nossa
capacidade de abstração e com ela toda a nossa capacidade de compreender”.
Então, o Homo sapiens está sendo substituído pelo Homo videns, ou seja, o que
importa é a imagem, é o ver sem entender.
ESTÁ TUDO
DOMINADO?
Várias
críticas foram feitas à ideia de que a indústria cultural estaria destruindo
nossa capacidade de discernimento. Uma delas foi formulada por Walter Benjamin
(1886-1940), um companheiro de trabalho de Theodor Adorno. Benjamin achava que
não era preciso ser tão radical na análise e que a indústria Cultural poderia
ajudar a desenvolver o conhecimento, pois levaria a arte e a cultura a um
número maior de pessoas. Ele declarava que, anteriormente, as obras de arte
estavam a serviço de um grupo pequeno de pessoas, de uma classe privilegiada.
Com as novas técnicas de reprodução - como a fotografia e o cinema -, essas
obras poderiam ser difundidas entre outras classes sociais, contribuindo para a
emancipação da arte de seu papel Ritualístico. A imagem em uma pintura, que
tinha unidade e duração, foi Substituída pela fotografia, que pode ser
reproduzida indefinidamente. Mas Benjamin não era ingênuo ao afirmar isso:
analisava a questão com mais abertura, sem perder a consciência de que o
capitalismo utilizava as novas técnicas a seu favor.
Que a
ideologia dominante está presente em todos os produtos da indústria cultural é
evidente, mas não se pode dizer que exista uma manipulação cultural integral e
avassaladora, pois isso significa declarar que os indivíduos não pensam e
apenas absorvem e reproduzem automaticamente o que recebem. É verdade que
muitos indivíduos tendem a reproduzir o que vêem na televisão ou lêem nas
revistas semanais de informação, mas a maioria seleciona o que recebe, filtra e
reelabora a informação; além disso, nem todos recebem as mesmas informações.
As
relações sociais cotidianas são muito diversas e envolvem laços de parentesco,
de vizinhança, de amizade. Formam uma rede de informação mesclando várias
fontes. Pesquisando a ação da indústria cultural, percebe-se que os indivíduos
não aceitam pacificamente tudo o que lhes é imposto. Exemplo disso é a
dificuldade que essa indústria tem de convencer as pessoas, evidenciada pela
necessidade de inventar e reinventar constantemente campanhas publicitárias.
Numa
perspectiva de enfrentamento ou de resistência, pode-se pensar, conforme
Antonio Gramsci, na possibilidade de haver um processo de contra-hegemonia,
mesmo que pequeno, que ocorre dentro e fora da indústria cultural. Nas empresas
há trabalhadores que desenvolvem suas atividades nos meios de comunicação e que
procuram apresentar críticas ao que se faz na indústria Cultural.
Fora
dessas empresas, há intelectuais que, individualmente ou em organizações,
criticam o que se faz na televisão, no cinema e em rodas as áreas culturais.
Outros procuram criar canais alternativos de informação sobre o que acontece no
mundo, desenvolver produções culturais não massificadas ou manter canais de
informação e crítica constantes em sites e blogs na internet. Não se pode
esquecer também dos movimentos culturais de milhares de pequenos grupos no
mundo que desenvolvem produções culturais específicas de seus povos e grupos de
origem.
O
UNIVERSO DA INTERNET
A
internet originou-se de um projeto militar dos Estados Unidos, na década de
1960. Naquele período, questionava-se como as autoridades estadunidenses
poderiam comunicar-se caso houvesse uma guerra nuclear. Se isso acontecesse,
toda a rede de comunicações poderia ser destruída e haveria necessidade de um
sistema de comunicação sem controle central, baseado numa rede em que a
informação circularia sem uma autoridade única.
Assim
nasceu um sistema no qual as informações são geradas em muitos pontos e não
ficam armazenadas num único lugar, mas em todos os pontos de contato possíveis.
Estes, por sua vez, podem gerar informações independentes, de tal modo que, se
fossem destruídos um ou mais pontos, os outros continuariam retendo e gerando
informações independentes. Posteriormente, esse modelo foi utilizado para
colocar em contato pesquisadores de diferentes universidades e acabou se
expandindo até atingir a maioria dos lugares.
Hoje, a
internet é o espaço onde há mais liberdade de produção, veiculação de
mensagens, notícias, cultura e tudo o que possa ser transmitido por esse
sistema. É um meio de comunicação em que se utiliza a palavra escrita ou
falada, as imagens, a música e outras tantas formas de comunicação, com muita
rapidez e para todos na rede. Existe, é verdade, um vocabulário restrito e mínimo
para se comunicar (conversar por escrito), o que empobrece muito a linguagem
escrita, além de uma série de ícones que indicam se a pessoa está alegre,
triste, nervosa, o que reduz a capacidade de expressar verbalmente esses
sentimentos.
Essa
nova tecnologia de informação oferece possibilidades quase infinitas de
pesquisa. É fato que há dados demais para a capacidade humana de processamento,
mas, se você tiver o mínimo conhecimento do funcionamento da internet e seus
instrumentos, poderá obter excelentes informações e com uma diversidade nunca
imaginada. Portanto, dependendo de como é Utilizada, a internet pode empobrecer
a capacidade de pensar ou ser um instrumento para a obtenção de conhecimento.
Nessa grande rede, encontram-se muitas das versões de um mesmo fato, cabendo a
nós descobrir bons sites e profissionais que mostrem ângulos diversos de
determinado fenômeno.
EXERCÍCIOS:
SANDUÍCHE
DE MÚSICA E LITERATURA
Para
termos uma ideia do que faz a indústria cultural, vamos tomar como exemplo uma
música erudita e examinar como a massificação transforma um prato original,
rico e saboroso em apenas um ingrediente de um grande sanduíche, distribuído
nos quatro cantos do mundo. É a obra de arte transformada numa mercadoria sem
qualidade.
Podemos
ver e ouvir a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) interpretando
uma obra de Mozart ou de qualquer outro autor erudito, com todos os
instrumentos, para que ela seja fruída em seu máximo esplendor. Mas, se essa
mesma obra for filmada e exibida no cinema com todos os seus componentes, a
experiência de quem assiste a ela já será deferente. E a sensação será outra se
a mesma apresentação for assistida em casa, em DVD.
Muitas
pessoas não apreciam música erudita, pois normalmente a obra é longa, mas
gostam de um ou outro trecho mais conhecido. Podem então ouvir no rádio ou
comprar um CD com uma parte da obra, mas não toda ela. Temos aí mais um corte
das possibilidades iniciais. Esse CD pode ser ouvido em casa ou no carro, e em
cada caso as sensações serão diferentes. Se a opção for comprar um CD com os
movimentos mais conhecidos interpretados por apenas um pianista a sensação será
ainda outra:
O indivíduo que compra esse
último CD ou que ouve no rádio essa interpretação vai ter a certeza de estar
ouvindo uma obra de Mozart e pode até sair assobiando pelas ruas as partes que
"comprou". Mas o que ouviu é algo bem diferente da obra original.
Observa-se
fato semelhante quando uma obra literária de grande expressão, como a de
Machado de Assis, por exemplo, é reduzida a pedaços ou a resumos, como os
difundidos nos cursinhos para que os alunos obtenham alguma informação que lhes
permita resolver as questões propostas nos vestibulares. Eles não terão o
conhecimento ou a sensação que decorre da leitura integral de um livro desse
autor, mas até poderão "achar" que leram e conhecem Machado de Assis,
quando apenas tiveram contato com resumos e pedaços desconectados de uma obra
inteira. Esses alunos estão consumindo um sanduíche quando poderiam estar
saboreando com prazer um jantar bem elaborado.
1- Obras
musicais e literárias são criadas para serem apreciadas na integralidade, pois
só assim se pode perceber, sentir e conhecer o que o autor de fato produziu. O
que você pensa e como se sente quando só tem acesso a um pedaço ou arremedo de
um livro ou uma peça musical?
2- A
indústria cultural, principalmente por meio da televisão e da internet, procura
formar futuros clientes para os produtos de seus patrocinadores, incentivando
desejos e necessidades que parecem naturais. Aponte exemplos disso no seu
cotidiano.
Valeu professor! Parabéns!
ResponderExcluiresse conteúdo aqui transcrito, facilita em muito o processo de socialização do conhecimento SOCIOLÓGICO.
Eu também sou professor de Sociologia em Belém do PARÁ.
Professor: Juscelino da Costa.
Professor,
ResponderExcluirParabéns pela transcrição do capítulo. Assim ficou bem melhor para manusear e socializar com os alunos. Tbm sou professor de Filosofia e Sociologia no Rio de Janeiro.
Desde já agradeço
Paulo Araujo
Professor,
ResponderExcluirParabéns pela transcrição do capítulo. Assim ficou bem melhor para manusear e socializar com os alunos. Tbm sou professor de Filosofia e Sociologia no Rio de Janeiro.
Desde já agradeço
Paulo Araujo
Valeu Professor!!
ResponderExcluir