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segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Sociologia - Cultura e ideologia


Colégio Estadual Pedro Calmon
 
 



Professor Roberto Alves      1º ANO - SOCIOLOGIA 3ª UNIDADE
CULTURA E IDEOLOGIA
Cultura e ideologia talvez sejam os conceitos mais amplos das ciências sociais, com diferentes definições. Vamos examinar os significados e usos desses dois conceitos de acordo com diferentes autores.
OS SIGNIFICADOS DE CULTURA
O emprego da palavra cultura, no cotidiano, é objeto de estudo de diversas ciências sociais. Félix Guattari, pensador francês (1930-1992) interessado nesse tema, reuniu os diferentes significados de "cultura" em três grupos, por ele designados cultura-valor, cultura-alma coletiva e cultura-mercadoria.
Cultura-valor é o sentido mais antigo e aparece claramente na ideia de "cultivar o espírito". É o que permite estabelecer a diferença entre quem tem cultura e quem não tem ou determinar se o indivíduo pertence a um meio culto ou inculto, definindo um julgamento de valor sobre essa situação. Nesse grupo inclui-se o uso do termo para identificar, por exemplo, quem tem ou não cultura clássica, artística ou científica.

O segundo significado, designado cultura-alma coletiva, é sinônimo de "civilização". Ele expressa a ideia de que todas as pessoas, grupos e povos têm cultura e identidade cultural. Nessa acepção, pode-se falar de cultura negra, cultura chinesa, cultura marginal, etc. Tal expressão presta-se assim aos mais diversos usos por aqueles que querem dar um sentido para a ação dos grupos aos quais pertencem, com a intenção de caracterizá-los ou identificá-los.
O terceiro sentido, o de cultura-mercadoria, corresponde à "cultura de massa". Ele não comporta julgamento de valor, como o primeiro significado, nem delimitação de um território específico, como o segundo. Nessa concepção, cultura compreende bens ou equipamentos, como os centros culturais, os cinemas, as bibliotecas e as pessoas que trabalham nesses estabelecimentos, e conteúdos teóricos e ideológicos de produtos, como filmes, discos e Iivros que estão à disposição de quem quer e pode comprá-los, ou seja, que estão disponíveis no mercado.
As três concepções de cultura estão presentes em nosso dia-a-dia, marcando sempre uma diferença bastante clara entre as pessoas - seja no sentido mais elitista (entre as que têm e as que não têm uma cultura clássica e erudita, por exemplo), seja no sentido de identificação com algum grupo específico, seja ainda em relação à possibilidade de consumir bens culturais. Todas essas concepções trazem uma carga valorativa, dividindo indivíduos, grupos e povos entre os que têm e os que não têm cultura ou, mesmo, entre os que têm uma cultura superior e os que têm uma cultura inferior.
CULTURA SEGUNDO A ANTROPOLOGIA
O conceito de cultura com frequência é vinculado à Antropologia, como se fosse específico dessa área do conhecimento. Por isso, vamos verificar como os antropólogos, partindo de uma visão universalista para uma visão particularista, definiram esse conceito.
Uma das primeiras definições de cultura apareceu na obra do antropólogo inglês Edward B. Tylor (1832-1917). De acordo com esse autor, cultura é o conjunto complexo de conhecimentos, crenças, arte, moral e direito, além de costumes e hábitos adquiridos pelos indivíduos em uma sociedade. Trata-se de uma definição universalista, ou seja, muito ampla, com a qual se procura expressar a totalidade da vida social humana, a cultura universal.
Já o antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942), que desenvolveu a maior parte de seus trabalhos nos Estados Unidos, tinha uma visão particularista. Ele pesquisou as diferentes formas culturais e demonstrou que as diferenças entre os grupos e sociedades humanas eram culturais, e não biológicas. Por isso, recusou qualquer generalização que não pudesse ser demonstrada por meio da pesquisa concreta.
Bronislaw Malinowski (1884-1942), antropólogo inglês, afirmava que, para fazer uma análise objetiva, era necessário examinar as culturas em seu estado atual, sem preocupações com suas origens. Concebia as culturas como sistemas funcionais e equilibrados, formados por elementos interdependentes que lhes davam características próprias, principalmente no tocante às necessidades básicas, como alimento, proteção e reprodução. Por ser interdependentes, esses elementos não poderiam ser examinados isoladamente.
Duas antropólogas estadunidenses, Ruth Benedict (1887-1948) e Margareth Mead (1901-1978), procuraram investigar as relações entre cultura e personalidade.
Benedict desenvolveu o conceito de padrão cultural, destacando a prevalência de uma homogeneidade e coerência em cada cultura. Em suas pesquisas, identificou dois tipos culturais extremos; o apolínico, representado por indivíduos conformistas, tranqüilos, solidários, respeitadores e comedidos na expressão de seus sentimentos, e o dionisíaco, que reunia os ambiciosos, agressivos, individualistas, com uma tendência ao exagero afetivo. De acordo com ela, entre os apolínicos e os dionisíacos haveria tipos intermediários que mesclariam algumas características dos dois tipos extremos.
Mead, por sua vez, investigou o modo como os indivíduos recebiam os elementos de sua cultura e a maneira como isso formava sua personalidade. Suas pesquisas tinham como objeto as condições de socialização da personalidade feminina e da masculina. Ao analisar os Arapesh, os Mundugumor e os Chambuli, três povos da Nova Guiné, na Oceania, Mead percebeu diferenças significativas. Entre os Arapesh não havia diferenciação entre homens e mulheres, pois ambos eram educados para ser dóceis e sensíveis e para servir aos outros. Também entre os Mundugumor não havia diferenciação: indivíduos de ambos os sexos eram treinados para a agressividade, caracterizando-se por relações de rivalidade, e não de afeição. Entre os Chambuli, finalmente, havia diferença entre homens e mulheres, mas de modo distinto do padrão que conhecemos: a mulher era educada para ser extrovertida, empreendedora, dinâmica e solidária com os membros de seu sexo. Já os homens eram educados para ser sensíveis, preocupados com a aparência e invejosos, o que os tornava inseguros. Isso resultava em uma sociedade em que as mulheres detinham o poder econômico e garantiam o necessário para a sustentação do grupo, ao passo que os homens se dedicavam às atividades cerimoniais e estéticas.
Baseada em seus achados, Mead afirmou que a diferença das personalidades não está vinculada a características biológicas, como o sexo, mas à maneira como em cada sociedade a cultura define a educação das crianças.
Para Claude Lévi-Strauss, antropólogo que nasceu na Bélgica, mas desenvolveu a maior parte de seu trabalho na França, a cultura deve ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos, entre os quais se incluem a linguagem, as regras matrimoniais, a arte, a ciência, a religião e as normas econômicas. Esses sistemas se relacionam e influenciam a realidade social e física das diferentes sociedades.
A grande preocupação de Lévi-Strauss foi analisar o que era comum e constante em todas as sociedades, ou seja, as regras universais e os elementos indispensáveis para a vida social. Um desses elementos seria a proibição do incesto (relações sexuais entre irmãos ou entre pais e filhos), presente em todas as sociedades. Partindo dessa preocupação, ele desenvolveu amplos estudos sobre os mitos, demonstrando que os elementos essenciais da maioria deles se encontram em todas as sociedades ditas primitivas.
CONVIVÊNCIA COM A DIFERENÇA: O ETNOCENTRISMO
Ter uma visão de mundo, avaliar determinado assunto de certa ótica, nascer e conviver em uma classe social, pertencer a uma etnia, ser homem ou mulher são algumas das condições que nos levam a pensar há diversidade humana, cultural e ideológica, e, consequentemente, na alteridade, isto é, no outro ser humano, que é igual a cada um de nós e, ao mesmo tempo, diferente.
Observa-se, no entanto, grande dificuldade na aceitação das diversidades em uma sociedade ou entre sociedades diferentes, pois os seres humanos tendem a tomar seu grupo ou sociedade como medida para avaliar os demais. Em outras palavras, cada grupo ou sociedade considera-se superior e olha com desprezo e desdém os outros, tidos como estranhos ou estrangeiros. Para designar essa tendência, o sociólogo estadunidense William G. Summer (1840-1910) criou em 1906 o termo etnocentrismo.
Manifestações de etnocentrismo podem ser facilmente observadas em nosso cotidiano. Quando lemos notícias sobre crises enfrentadas por povos de outros países, por exemplo, com frequência estabelecemos comparações entre a cultura deles e a nossa, considerando a nossa superior, principalmente se as diferenças forem muito grandes. Na história não faltam exemplos desse tipo de comparação: na Antiguidade os romanos chamavam de "bárbaros" aqueles que não eram de sua cultura; no Renascimento, após os contatos com culturas diversas propiciados pela expansão marítima, os europeus passaram a chamar os povos americanos de "selvagens", e assim por diante.
O etnocentrismo foi um dos responsáveis pela geração de intolerância e preconceito - cultural, religioso, étnico e político -, assumindo diferentes expressões no decorrer da história. Em nossos dias ele se manifesta, por exemplo, na ideologia racista da supremacia do branco sobre o negro ou de uma etnia sobre as outras. Manifesta-se, também, num mundo que é globalizado, na ideia de que a cultura ocidental é superior, e os povos de culturas diferentes devem assumi-la, modificando suas crenças normais e valores. Essa forma de etnocentrismo pode levar a consequências sérias em nossa convivência com os outros e nas relações entre os povos.
TROCAS CULTURAIS E CULTURAS HÍBRIDAS
No mundo globalizado em que vivemos, tendo o nosso cotidiano invadido por situações e informações provenientes dos mais diversos lugares, é possível afirmar que haja uma cultura "pura"? Até que ponto chegou o processo de mundialização da cultura?
Em seu livro Culturas híbridas, o pensador argentino Néstor García Canclini analisa essas questões. Lançando um olhar sobre a história, ele declara que, até o século XIX, as relações culturais ocorriam entre os grupos próximos, familiares e vizinhos, com poucos contatos externos. Os padrões culturais resultavam de tradições transmitidas oralmente e por meio de livros, quando alguém os tinha em casa, porque bibliotecas públicas ou mesmo escolares eram raras. Os valores nacionais eram quase uma abstração, pois praticamente não havia a consciência de uma escala tão ampla.
Já no século XIX e início do século XX, cresceu a possibilidade de trocas culturais, pois houve um grande desenvolvimento dos meios de transporte, do sistema de correios, da telefonia, do rádio e do cinema. As pessoas passaram a ter contato com situações e culturas diferentes. As trocas culturais efetivadas a partir de então ampliaram as referências para avaliar o passado, o presente e o futuro. O mundo não era mais apenas o local em que um grupo vivia. Tornou-se muito mais amplo, assim como as possibilidades culturais. A cultura nacional passou a ter determinada constituição e os valores e bens culturais de vários povos ou países cruzaram-se, com a consequente ampliação das influências recíprocas.
No decorrer do século XX, com o desenvolvimento das tecnologias de comunicação, o cinema; a televisão e a internet tornaram-se instrumentos de trocas culturais intensas, e os contatos individuais e sociais passaram a ter não um, mas múltiplos pontos de origem. Desde então as trocas culturais são feitas em tal quantidade que não se sabe mais a origem delas. Elementos de culturas antes pouco conhecidas aparecem com força em muitos lugares, ao mesmo tempo. As expressões culturais dos países centrais, como os Estados Unidos e algumas nações da Europa, proliferam-se em todo o mundo. As culturas de países distantes ou próximos se mesclam a essas expressões, construindo culturas híbridas que não podem ser mais caracterizadas como de um país, mas como parte de uma imensa cultura mundial.
Isso não significa que as expressões representativas de grupos, regiões ou até de nações tenham desaparecido. Elas continuam presentes e ativas, mas coexistem com essas culturas híbridas que atingem o cotidiano das pessoas por meios diversos, como a música, a pintura, o cinema e a literatura, normalmente fomentadas pela concentração crescente dos meios de comunicação.
Alguém poderia perguntar: Por que essas formas particulares, grupais, regionais ou nacionais deveriam existir no universo cultural mundial, já que vivemos num mundo globalizado? Em seu livro Artes sob pressão: promovendo a diversidade cultural na era da globalização, o sociólogo holandês Joost Smiers responde que assim haveria a possibilidade de uma diversidade cultural ainda maior e mais significativa: haveria uma democracia cultural de fato à disposição de todos. Em suas palavras: “A questão central é a dominação cultural, e isso precisa ser discutido com propostas alternativas para preservar e promover a diversidade no mundo”.
CULTURA ERUDITA E CULTURA POPULAR
A separação entre cultura popular e erudita, com a atribuição de maior valor à segunda, está relacionada à divisão da sociedade em classes, ou seja, é resultado e manifestação das diferenças sociais. Há, de acordo com essa classificação, uma cultura identificada com os segmentos populares e outra, superior, identificada com as elites.
A cultura erudita abrangeria expressões artísticas como a música clássica de padrão europeu, as artes plásticas - escultura e pintura -, o teatro e a literatura de cunho universal. Esses produtos culturais, como qualquer mercadoria, podem ser comprados e, em alguns casos, até deixados de herança como bens físicos:
A chamada cultura popular encontra expressão nos mitos e contos, danças, música - de sertaneja a cabocla -, artesanato rústico de cerâmica ou de madeira e pintura; corresponde, enfim, à manifestação genuína de um povo. Mas não se restringe ao que é tradicionalmente produzido no meio rural. Inclui também expressões urbanas recentes, como os grafites, o hip-hop e os sincretismos musicais oriundos do interior ou das grandes cidades, o que demonstra haver constante criação e recriação no universo cultural de base popular. Nesse universo quem cria é o povo, nas condições possíveis. A palavra folclore (do inglês folklore, junção de folk, "povo", e lore, "saber") significa "discurso do povo", "sabedoria do povo" ou "conhecimento do povo".
Para examinar criticamente essa diferenciação, voltemos ao termo cultura, agora segundo a análise do pensador brasileiro Alfredo Bosi. De acordo com Bosi, não há no grego uma palavra específica para cultura; há, sim, uma palavra que se aproxima desse conceito, que é Paideia, "aquilo que se ensina à criança", "aquilo que deve ser trabalhado na criança até que ela se transforme em adulta". A palavra cultura vem do latim e designa "o ato de cultivar a terra", "de cuidar do que se planta", ou seja, é o trabalho de preparar o solo, semear e fazer tudo para que uma planta cresça e dê frutos.
Cultura está assim vinculada ao ato de trabalhar, a determinada ação, seja a de ensinar uma criança, seja a de cuidar de um plantio. Se pensarmos nesse sentido original, todos têm acesso à cultura, pois todos podem trabalhar. Para escrever um romance, é preciso trabalhar uma narrativa; para fazer uma toalha de renda, uma música, uma mesa de madeira ou uma peça de mármore, é necessário trabalhar. Para Bosi, isso é cultura. E é por essa razão que os produtos culturais gerados pelo trabalho chamam-se obras, que vem de opus, derivado do verbo operar, ou seja, é o processo de fazer, de criar algo.
Se uma pessoa compra um livro, um disco, um quadro ou uma escultura, vai ao teatro ou a exposições, adquire, mas não produz cultura, ou seja, ela pode possuir ou ter acesso aos bens culturais gerados pelo trabalho, sem produzi-las. Esses bens servem para proporcionar deleite e prazer, e são usados por algumas pessoas para afirmar e mostrar que "possuem cultura", quando são apenas consumidoras de uma mercadoria como qualquer outra. Não ter acesso a esses bens não significa, portanto, não ter cultura.
Bosi chama a atenção para o fato de haver em muitos países órgãos públicos que procuram desenvolver ações para "conservar a cultura popular original", com certo receio de que ela não resista ao avanço da indústria cultural. Ora, os produtos culturais são criados em determinadas condições, remodelando-se continuamente, como ocorre com as festas, as músicas, as danças, o artesanato e outras tantas manifestações. Nesse sentido, é necessário analisar a cultura como processo, como ato de trabalho no tempo que não se extingue. A criação cultural não morre com seus autores, e basta que o povo exista para que ela sobreviva. Entenda-se aqui povo não como uma massa amorfa e homogênea de oprimidos submissos, mas como um conjunto de indivíduos, com ideias próprias e capacidade criativa e, produtiva, que resiste muitas vezes silenciosamente, sobretudo por meio da produção cultural, como seus cantos e festas.
Para Bosi, a cultura é alguma coisa que se faz, e não apenas um produto que se adquire. É por isso que não tem sentido comparar cultura popular com cultura erudita. Quando afirmamos que ter cultura significa ser superior e não ter cultura significa ser inferior, utilizamos a condição de posse de cultura como elemento para diferenciação social e imposição de uma superioridade que não existe. Isso é ideologia.
A IDEOLOGIA, SUAS ORIGENS E PERSPECTIVAS
A ideia de cultura nasce da análise das sociedades antigas, mas o conceito de ideologia é um produto essencialmente moderno, pois antes da Idade Moderna as explicações da realidade eram dadas pelos mitos ou pelo pensamento religioso.
Uma das primeiras ideias sobre ideologia foi expressa por Francis Bacon (1561-1626), em seu livro Novum organum (1620). Ele não utilizava o termo ideologia, mas, ao recomendar um estudo baseado na observação, declarava que, até aquele momento, o entendimento da verdade estava obscurecido por ídolos, ou seja, por ideias erradas e irracionais.
O termo ideologia foi utilizado inicialmente pelo pensador francês Destutt de Tracy (1754-1836), em seu livro Elementos de ideologia (1801), no sentido de "ciência da gênese das ideias". Tracy procurou elaborar uma explicação para os fenômenos sensíveis que interferem na formação das ideias, ou seja, a vontade, a razão, a percepção e a memória.
Um segundo sentido de ideologia, o de "ideia falsa" ou "ilusão", foi utilizado por Napoleão Bonaparte num discurso perante o Conselho de Estado, em 1812. Napoleão afirmou nesse discurso que seus adversários, que questionavam e perturbavam a sua ação governamental, eram apenas metafísicos, pois o que pensavam não tinha conexão com o que estava acontecendo na realidade, na história.
Auguste Comte (1798-1857), em seu Curso de filosofia positiva (1830-1842), retomou o sentido de ideologia utilizado por Tracy - o de estudo da formação das ideias, partindo das sensações (relação do corpo com o meio) - e acrescentou outro, o de conjunto de ideias de determinada época.
Karl Marx também não apresentou uma única definição de ideologia. O livro A ideologia alemã (1846), ele se referiu à ideologia como um sistema elaborado de representações e de ideias que correspondem a formas de consciência que os homens têm em determinada época. Ele afirmou ainda que as ideias dominantes em qualquer época são sempre as de quem domina a vida material e, portanto, a vida intelectual.
Marx desenvolveu a concepção de que a ideologia é a inversão da realidade, no sentido de reflexo, como na câmara fotográfica, em que a imagem aparece "invertida". Contrapondo-se a muitos autores que acreditavam que as ideias transformavam e definiam a realidade, Marx afirmava que a existência social condicionava a consciência dos indivíduos sobre a situação em que viviam. Assim, para Marx, as ideologias não são meras ilusões e aparências - e muito menos o fundamento da história -, mas são uma realidade objetiva e atuante.
No mesmo livro de Marx, pode-se encontrar a explicação de que a ideologia é resultante da divisão entre o trabalho manual e o intelectual. O trabalho intelectual esteve nas mãos da classe dominante e, assim, à medida que pôde "emancipar-se" da realidade concreta em que foi produzido e se transformar em teoria pura, pôde também transformar-se em teoria geral para todas as sociedades, sem levar em conta a história de cada uma delas. Essa emancipação das ideias é muito bem exemplificada por Marx. Ele se refere a um indivíduo que afirmava que os homens só se afogavam porque estavam possuídos pela ideia de gravidade. Se abandonassem essa ideia, estariam livres de qualquer afogamento. Marx não diz se esse homem foi bem-sucedido na luta contra a ilusão de gravidade nem se tentou testar sua teoria.
Émile Durkheim, ao discutir a questão da objetividade científica em seu livro As regras do método sociológico (1895), afirma que, para ser o mais preciso possível, o cientista deve deixar de lado todas as pré-noções, as noções vulgares, as ideias antigas e pré-científicas e as ideias subjetivas. São essas ideias que ele entende por ideologia, ou seja, o contrário de ciência.
Karl Mannheim (1893-1947) talvez seja o sociólogo depois de Marx que mais tenha influenciado a discussão sobre ideologia. No livro Ideologia e utopia (1929), ele conceitua duas formas de ideologia: a particular e a total. A particular corresponde à ocultação da realidade, incluindo mentiras conscientes e ocultamentos subconscientes e inconscientes, que provocam enganos ou mesmo autoenganos. A ideologia total é a visão de mundo (cosmovisão) de uma classe social ou de uma época. Nesse caso, não há ocultamento ou engano, apenas a reprodução das ideias próprias de uma classe ou ideias gerais que permeiam toda a sociedade.
Para Mannheim, as ideologias são sempre conservadoras, pois expressam o pensamento das classes dominantes, que visam à estabilização da ordem. Em contraposição, ele chama de utopia o que pensam as classes oprimidas, que buscam a transformação.
A IDEOLOGIA E O GRUPO SOCIAL
Todos nós participamos de certos grupos de ideias. São espécies de "bolsões" ideológicos, onde há pessoas que dizem coisas em que nós também acreditamos, pelas quais também lutamos, que têm opiniões muito parecidas com as nossas. Há alguns autores que dizem que na verdade nós não falamos de fato o que acreditamos dizer, haveria certos mecanismos, certas estruturas que "falariam por nós". Ou seja, quando damos nossas opiniões, quando participamos de algum acontecimento, de alguma manifestação, temos muito pouco de nosso aí, reproduzimos conceitos que já circulam nesses grupos.
Ideologia não é, portanto, um fato individual, não atua inclusive de forma consciente na maioria dos casos. Quando pretendemos alguma coisa, quando defendemos uma ideia um interesse, uma aspiração, uma vontade, um desejo, normalmente não sabemos, não temos consciência de que isso ocorre dentro de um esquema maior, do qual somos apenas representantes - repetimos conceitos e vontades, que já existiam anteriormente.
Depois de Mannheim, muitos outros pensadores estudaram e utilizaram o conceito de ideologia, mas todos eles tiveram como referência os autores que citamos.
A IDEOLOGIA NO COTIDIANO
Em nosso cotidiano, ao nos relacionarmos com as outras pessoas, exprimimos por meio de ações, palavras e sentimentos uma série de elementos ideológicos. Como vivemos em uma sociedade capitalista, a lógica que a estrutura, a da mercadoria, permeia todas as nossas relações, sejam elas econômicas, políticas, sociais ou sentimentais. Podemos dizer que há um modo capitalista de viver, de sentir e de pensar.
A expressão da ideologia na sociedade capitalista pressupõe a elaboração de um discurso homogêneo, pretensamente universal, que, buscando identificar a realidade social com o que as classes dominantes pensam sobre ela, oculta as contradições existentes e silencia outros discursos e representações contrárias.
Esse discurso não leva em conta a história e destaca categorias genéricas - a família ou a juventude, por exemplo -, passando, em cada caso, uma ideia de unidade, de uniformidade. Ora, existem famílias com constituições diferentes e em situações econômicas e sociais diversas. Há jovens que vivem nas periferias das cidades ou na zona rural, enfrentando dificuldades, bem como jovens que moram em bairros luxuosos ou condomínios fechados, desfrutando de privilegiada situação econômica ou educacional. Portanto, não existe a família e a juventude, mas famílias e jovens diversos, cada qual com sua história.
Outra manifestação ideológica na sociedade capitalista é a ideia de que vivemos em uma comunidade sem muitos conflitos e contradições. As expressões mais claras disso são as concepções de nação ou de região como determinado país ou dado espaço geográfico. Essas concepções passam a visão de que há uma comunidade de interesses e propósitos partilhados por todos os que vivem num país ou num espaço específico. Ficam assim obscurecidas as diferenças sociais, econômicas e culturais, os conflitos entre os vários grupos e classes, enfatizando-se uma unidade que não existe. Um exemplo disso é a atribuição de determinadas características a toda uma região que tem em seu interior uma diversidade muito grande.
Mas existem outras formas ideológicas que são desenvolvidas sem muito alarde e que penetram nosso cotidiano. Uma delas é a ideia de felicidade. Felicidade, para muitos, é um estado relacionado ao amor, mas também significa estabilidade financeira e profissional, bem-estar existencial e material. É um conjunto de situações, mas normalmente a mais focalizada é a amorosa. E os filmes, as novelas, as revistas, apesar de todas as condições adversas que um indivíduo possa enfrentar, estão sempre reforçando o lema: "o amor vence todas as dificuldades".
Talvez a maior de todas as expressões ideológicas que encontramos em nosso cotidiano seja a ideia de que o conhecimento científico é verdade inquestionável. Muitas pessoas podem não acreditar em uma explicação oferecida por campos do conhecimento que não são considerados científicos, mas basta dizer que se trata de resultado de pesquisa ou informação de um cientista para que a tomem como verdade e passem a orientar suas práticas cotidianas por ela. Isso aparece principalmente quando as informações e notícias são veiculadas pelos meios de comunicação e se referem à saúde. Da busca do sentido da vida às possibilidades de sucesso, a ciência é vista como uma grande solução para todos os problemas, males e enigmas.
Ora, nada está mais distante do conhecimento científico do que a ideia de verdade absoluta e a pretensão de explicar todas as coisas. A ciência nasceu e se desenvolveu questionando as explicações dadas a situações e fenômenos, e continua se desenvolvendo com base no questionamento de seus próprios resultados. O pensamento científico é histórico e tem sua validade temporária, sendo a dúvida seu valor maior.
Mas o conhecimento científico, quando analisado da perspectiva de um pensamento hegemônico ocidental, torna-se colonialista, pois o que é particular (ocidental) se universaliza e se transforma em um paradigma que nega outras formas de explicar e conhecer o mundo. Assim, desqualifica outras culturas e saberes, tidos como inferiores e exóticos, como o conhecimento das civilizações ameríndias, orientais e árabe.
EXERCÍCIOS:
O CULTO AO SUCESSO
“Seja uma pessoa de sucesso!” Quantas vezes ouvimos essa afirmação nos últimos tempos? A maioria das propagandas da sociedade atual leva-nos a acreditar que só existe o caminho da vitória.
Devemos sempre ser vencedores, jamais vencidos; para isso é preciso ter sempre a melhor performance, seja corporal, seja intelectual. Ou temos um belo corpo ou um currículo composto somente de vitórias. Quem estiver fora desse conceito é considerado perdedor, uma pessoa que não corresponde às expectativas sociais de sucesso e, portanto, não merece estar entre os vencedores. No Japão, por exemplo, alguns jovens que não conseguem aprovação na escola ou na universidade, sentindo-se perdedores, se suicidam.
O culto ao sucesso afeta desde cedo a vida das crianças, que acabam se tornando "pequenos adultos superocupados". Na ânsia de fabricar futuros vencedores, os pais inscrevem os filhos em toda sorte de atividade - além da escola formal -, pois estes precisam estar preparados para o sucesso. As crianças, então, deixam de brincar e passam a ter uma agenda com atividades como inglês, informática, natação, judô, música..., tudo ao mesmo tempo.
Na juventude e na idade adulta, o culto à performance continua de várias formas. Cuidar do corpo, por exemplo, deixa de ser uma questão de saúde e bem-estar e passa a ser um princípio exclusivo da estética. É comum vermos academias lotadas de pessoas à procura da tão sonhada performance. Essa busca leva alguns jovens ao absurdo de tomar remédios indicados para bois e cavalos, buscando aumento da massa muscular. As jovens querem ter o padrão de beleza mostrado na mídia, mesmo que isso signifique ficar sem comer e debilitar-se fisicamente. É comum ver os garotos alardeando seu desempenho sexual, mesmo que para isso usem medicamentos do tipo Viagra para demonstrar sua (im)potência.
O CURRÍCULO “VITAMINADO”
Você já deve estar pensando em fazer o seu curriculum vitae e sabe o que deverá incluir nele. Ora, nós só colocamos aquilo que deu certo em nossa carreira. O documento que registra nossa passagem pela vida produtiva foi bem analisado por Leandro Konder, filósofo brasileiro, em um artigo intitulado "Curriculum Mortis e a reabilitação da autocrítica". Nesse artigo, Konder diz que o curriculum vitae é a ponta do iceberg de nossa visão triunfalista da vida, pois nele só colocamos aquilo que consideramos um sucesso em nossa carreira. Em suas palavras, "o curriculum vitae é o elemento mais ostensivo de uma ideologia que nos envolve e nos educa nos princípios do mercado capitalista; é a expressão de uma ideologia que inculca nas nossas cabeças aquela mentalidade de cavalo de corrida... O que aconteceu de errado, os tropeços, as quedas e os fracassos não aparecem nele, quando na maioria das vezes essas são a maior parte das ocorrências de nosso viver".
Por isso, o filósofo propõe que, com o curriculum vitae, façamos também o nosso curriculum mortis, no qual registremos tudo o que não deu certo. Será uma maneira de fazer autocrítica: o primeiro passo para desenvolver a capacidade de criticar e ser criticado e, ainda, ampliar a autoestima.
1-    Como considerar o culto ao sucesso pessoal e a necessidade de desenvolver um curriculum vitae expressivo em um país como o nosso, com tantas desigualdades sociais e com tão poucas possibilidades de a maioria da população chegar a um curso universitário e, quando isso acontece, conseguir um emprego compatível com o nível de conhecimento adquirido?
2-    Dê exemplos de coisas fundamentais em nossa vida que não se resumem à performance e ao sucesso.
3-    Como seria o seu curriculum mortis, ou seja, a relação do que não deu certo em sua vida?
MESCLANDO CULTURA E IDEOLOGIA
Vivemos num mundo de comunicações, uma realidade que faz parte da nossa vida desde pequenos: cotidianamente, entre outras atividades, vemos televisão, fazemos pesquisas na internet, contatamos amigos por e-mail, MSN ou sites de relacionamento, ouvimos música em fones de ouvido enquanto andamos nas ruas, vemos filmes e propagandas, lemos jornais e revistas, escutamos rádio. Estamos mergulhados tanto na cultura como na ideologia. Vamos tentar entender essa realidade à luz da Sociologia.
DOMINAÇÃO E CONTROLE
Ao analisar a cultura e a ideologia, vários autores procuram demonstrar que não se podem utilizar esses dois conceitos separadamente, pois há uma profunda relação entre eles, sobretudo no que diz respeito ao processo de dominação nas sociedades capitalistas.
O pensador italiano Antônio Gramsci (1891-1937) analisa essa questão com base no conceito de hegemonia (palavra de origem grega que significa “supremacia”, “preponderância”) e no que ele chama de aparelhos de hegemonia.
Por hegemonia pode-se entender o processo pelo qual uma classe dominante consegue fazer que o seu projeto seja aceito pelos dominados, desarticulando a visão de mundo autônoma de cada grupo potencialmente adversário. Isso é feito por meio dos aparelhos de hegemonia, que são práticas intelectuais e organizações no interior do Estado ou fora dele (livros, jornais, escolas, música, teatro, etc.). Nesse sentido, cada relação de hegemonia é sempre pedagógica, pois envolve uma prática de convencimento, de ensino e aprendizagem.
Para Gramsci, uma classe se torna hegemônica quando, além do poder coercitivo e policial, Utiliza a persuasão, o consenso, que é desenvolvido mediante um sistema de ideias muito bem elaborado por intelectuais a serviço do poder, para convencer a maioria das pessoas, até as das classes dominadas. Por esse processo, cria-se uma “cultura dominante efetiva”, que deve penetrar no senso comum de um povo, com o objetivo de demonstrar que a forma como aquele que domina vê o mundo é a única possível.
A ideologia não é o lugar da ilusão e da mistificação, mas o espaço da dominação, que não se estabelece somente com o uso legítimo da força pelo Estado, mas também pela direção moral e intelectual da sociedade como um todo, Utilizando os elementos culturais de cada povo.
Mas Gramsci aponta também a possibilidade de haver um processo de contra hegemonia, desenvolvido por intelectuais orgânicos, vinculados à classe trabalhadora, na defesa de seus interesses. Contrapondo-se à inculcação dos ideais burgueses por meio da escola, dos meios de comunicação de massa, etc. eles combatem nessas mesmas frentes, defendendo outra forma de “pensar, agir e sentir” na sociedade em que vivem.
O sociólogo francês Pierre Bourdieu desenvolveu o conceito de violência simbólica para identificar formas culturais que impõem e fazem que aceitemos como normal, como verdade que sempre existiu e não pode ser questionada, um conjunto de regras não escritas nem ditas. Ele usa a palavra doxa para designar esse tipo de pensamento e prática social estável, tradicional, em que o poder aparece como natural.
Dessa ideia nasce o que Bourdieu define como a naturalização da história, condição em que os fatos sociais, independentemente de ser bons ou ruins, passam por naturais e tornam-se uma “verdade” para todos. Um exemplo evidente é a dominação masculina, vista em nossa sociedade como algo “natural”, já que as mulheres são “naturalmente” mais fracas e sensíveis e, portanto, devem se submeter aos homens. E todos aceitam essa ideia e dizem que” isso foi, é e será sempre assim”.
Bourdieu declara que é pela cultura que os dominantes garantem o controle ideológico, desenvolvendo uma prática cuja finalidade é manter o distanciamento entre as classes sociais. Assim, existem práticas sociais e culturais que distinguem quem é de uma classe ou de outra: os “cultos” têm conhecimentos científicos, artísticos e literários que os opõem aos “incultos”. Isso é resultado de uma imposição cultural (violência simbólica) que define o que é “ter cultura”.
A violência simbólica ocorre de modo claro no processo educacional. Quando entramos na escola, em seus diversos níveis, devemos obedecer sempre a um conjunto de regras e absorver um conjunto de saberes predeterminados, aceitos como o que se deve ensinar. Essas regras e esses saberes não são questionados e normalmente não se pergunta quem os definiu.
Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), pensadores alemães, procuraram analisar a relação entre cultura e ideologia com base no conceito de indústria cultural. Apresentaram esse conceito em 1947, no texto A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. Nele, afirmavam que o conceito de indústria cultural permitia explicar o fenômeno da exploração comercial e a vulgarização da cultura, como também a ideologia da dominação. A preocupação básica era com a emergência de empresas interessadas na produção em massa de bens culturais, como qualquer mercadoria (roupas, automóveis, sabonetes, etc.), visando exclusivamente ao consumo, tendo como fundamentos a lucratividade e a adesão incondicional ao sistema dominante.
Adorno e Horkheimer apontaram a possibilidade de homogeneização das pessoas, grupos e classes sociais; esse processo atingiria todas as classes, que seriam seduzidas pela indústria cultural, pois esta coloca a felicidade imediatamente nas mãos dos consumidores mediante a compra de alguma mercadoria ou produto cultural. Cria-se assim uma subjetividade uniforme e, por isso, massificada.
Nos mais diversos filmes de ação, somos tranquilizados com a promessa de que o vilão terá um castigo merecido. Tanto nos sucessos musicais quanto nos filmes, a vida parece dizer que tem sempre as mesmas tonalidades e que devemos nos habituar a seguir os compassos previamente marcados. Dessa forma, sentimo-nos integrados numa sociedade imaginária, sem conflitos e sem desigualdades.
A diversão, nesse sentido, é sempre alienante, conduz à resignação e em nenhum momento nos instiga a refletir sobre a sociedade em que vivemos. A indústria cultural transforma as atividades de lazer em um prolongamento do trabalho, promete ao trabalhador uma fuga do cotidiano e lhe oferece, de maneira ilusória, esse mesmo cotidiano como paraíso. Por meio da sedução e do convencimento, a indústria cultural vende produtos que devem agradar ao público, não para fazê-lo pensar com informações novas que o perturbem, mas para propiciar-lhe uma fuga da realidade. Tal fuga, segundo Adorno, faz que o indivíduo se aliene, para poder continuar aceitando com um “tudo bem” a exploração do sistema capitalista.
Os meios de comunicação e a vida cotidiana
Entre todos os meios de comunicação, a televisão é o mais forte agente de informações e de entretenimento, embora pesquisas recentes já demonstrem que ela pode ser desbancada pela internet na massificação da informação. Diante disso, pode-se declarar que a análise de Adorno e Horkheimer, desenvolvida em 1947, está ultrapassada ou mantém seu poder de explicação?
Observando que o que mudou foi a tecnologia dos meios de comunicação, as formas de mistificação que adotam e a apresentação e embalagem dos produtos, podemos afirmar que o conceito de indústria cultural conserva o mesmo poder de explicação. Os produtos culturais aparecem com invólucros cada vez mais esplendorosos, pois cada dia são maiores as exigências para prender a atenção dos indivíduos. Produtos de baixa qualidade têm a oferta justificada pelo argumento de que atendem às necessidades das pessoas que desejam apenas entretenimento e diversão, não estando preocupadas com o caráter educativo ou cultural do que consomem. Mas isso é falso, pois esses produtos são oferecidos tendo em vista as necessidades das próprias empresas, cujo objetivo é unicamente o lucro.
O “mundo maravilhoso” e sem diferenças está presente nos programas de televisão, que mostram guerras, mortes, miséria e opressão de outros povos, nunca do nosso, e demonstram que isso sempre foi assim, e, portanto, é inútil e desnecessário melhorar o que aí está. Preocupado com o que a televisão vem fazendo em termos culturais, o cientista social italiano Giovanni Sartori, em seu livro Homo videns (2001), reflete sobre esse meio de comunicação.
Retomando a história das comunicações, ele destaca o fato de que as civilizações se desenvolveram quando a transmissão de conhecimento passou da forma oral para a escrita. Até o surgimento da imprensa, em 1440, a transmissão de conhecimentos era muito restrita. Foi com Johannes Gutenberg e a invenção da imprensa que ocorreu o grande salto tecnológico que permitiu a muitas pessoas o acesso à cultura escrita.
No século XIX, além do desenvolvimento da imprensa, com jornais e livros, outros avanços tecnológicos permitiram a diversificação das comunicações. Foram então inventados o telégrafo e o telefone, que permitiram a comunicação oral e escrita entre pessoas a grandes distâncias. Com o rádio, apareceu o primeiro meio capaz de eliminar as distâncias em termos sociais mais amplos. Mas todos esses meios mantinham-se no universo da comunicação puramente lingüística, escrita ou falada.
Já no final do século XIX e início do século XX apareceu o cinema, primeiro mudo e depois falado, inaugurando um outro universo de comunicação, no qual a imagem se tornou fundamental. A televisão, nascida em meados do século XX, como o próprio nome indica (televisão = “ver de longe”), criou um elemento completamente novo, em que o ver tem preponderância sobre o ouvir. A voz dos apresentadores é secundária, pois é subordinada às imagens que comenta e analisa. As imagens contam mais do que as palavras. Nisso o indivíduo volta à sua condição animal.
A televisão nos dá a possibilidade de ver tudo sem sair do universo local. Assim, para Sartori, além de um meio de comunicação, a televisão é um elemento que participa da formação das pessoas e pode gerar um novo tipo de ser humano. Essa afirmação está baseada na observação de que as crianças, em várias partes do mundo, passam muitas horas diárias vendo televisão antes de saber ler e escrever. Isso dá margem a um novo tipo de formação, centralizado na capacidade de ver.
Se o que nos torna diferentes dos outros animais é nossa capacidade de abstração, a televisão, para Sartori, “inverte o progredir do sensível para o inteligível, virando-o em um piscar de olhos para um retorno ao puro ver. Na realidade, a televisão produz imagens e apaga os conceitos; mas desse modo atrofia a nossa capacidade de abstração e com ela toda a nossa capacidade de compreender”. Então, o Homo sapiens está sendo substituído pelo Homo videns, ou seja, o que importa é a imagem, é o ver sem entender.
ESTÁ TUDO DOMINADO?
Várias críticas foram feitas à ideia de que a indústria cultural estaria destruindo nossa capacidade de discernimento. Uma delas foi formulada por Walter Benjamin (1886-1940), um companheiro de trabalho de Theodor Adorno. Benjamin achava que não era preciso ser tão radical na análise e que a indústria Cultural poderia ajudar a desenvolver o conhecimento, pois levaria a arte e a cultura a um número maior de pessoas. Ele declarava que, anteriormente, as obras de arte estavam a serviço de um grupo pequeno de pessoas, de uma classe privilegiada. Com as novas técnicas de reprodução - como a fotografia e o cinema -, essas obras poderiam ser difundidas entre outras classes sociais, contribuindo para a emancipação da arte de seu papel Ritualístico. A imagem em uma pintura, que tinha unidade e duração, foi Substituída pela fotografia, que pode ser reproduzida indefinidamente. Mas Benjamin não era ingênuo ao afirmar isso: analisava a questão com mais abertura, sem perder a consciência de que o capitalismo utilizava as novas técnicas a seu favor.
Que a ideologia dominante está presente em todos os produtos da indústria cultural é evidente, mas não se pode dizer que exista uma manipulação cultural integral e avassaladora, pois isso significa declarar que os indivíduos não pensam e apenas absorvem e reproduzem automaticamente o que recebem. É verdade que muitos indivíduos tendem a reproduzir o que vêem na televisão ou lêem nas revistas semanais de informação, mas a maioria seleciona o que recebe, filtra e reelabora a informação; além disso, nem todos recebem as mesmas informações.
As relações sociais cotidianas são muito diversas e envolvem laços de parentesco, de vizinhança, de amizade. Formam uma rede de informação mesclando várias fontes. Pesquisando a ação da indústria cultural, percebe-se que os indivíduos não aceitam pacificamente tudo o que lhes é imposto. Exemplo disso é a dificuldade que essa indústria tem de convencer as pessoas, evidenciada pela necessidade de inventar e reinventar constantemente campanhas publicitárias.
Numa perspectiva de enfrentamento ou de resistência, pode-se pensar, conforme Antonio Gramsci, na possibilidade de haver um processo de contra-hegemonia, mesmo que pequeno, que ocorre dentro e fora da indústria cultural. Nas empresas há trabalhadores que desenvolvem suas atividades nos meios de comunicação e que procuram apresentar críticas ao que se faz na indústria Cultural.
Fora dessas empresas, há intelectuais que, individualmente ou em organizações, criticam o que se faz na televisão, no cinema e em rodas as áreas culturais. Outros procuram criar canais alternativos de informação sobre o que acontece no mundo, desenvolver produções culturais não massificadas ou manter canais de informação e crítica constantes em sites e blogs na internet. Não se pode esquecer também dos movimentos culturais de milhares de pequenos grupos no mundo que desenvolvem produções culturais específicas de seus povos e grupos de origem.
O UNIVERSO DA INTERNET
A internet originou-se de um projeto militar dos Estados Unidos, na década de 1960. Naquele período, questionava-se como as autoridades estadunidenses poderiam comunicar-se caso houvesse uma guerra nuclear. Se isso acontecesse, toda a rede de comunicações poderia ser destruída e haveria necessidade de um sistema de comunicação sem controle central, baseado numa rede em que a informação circularia sem uma autoridade única.
Assim nasceu um sistema no qual as informações são geradas em muitos pontos e não ficam armazenadas num único lugar, mas em todos os pontos de contato possíveis. Estes, por sua vez, podem gerar informações independentes, de tal modo que, se fossem destruídos um ou mais pontos, os outros continuariam retendo e gerando informações independentes. Posteriormente, esse modelo foi utilizado para colocar em contato pesquisadores de diferentes universidades e acabou se expandindo até atingir a maioria dos lugares.
Hoje, a internet é o espaço onde há mais liberdade de produção, veiculação de mensagens, notícias, cultura e tudo o que possa ser transmitido por esse sistema. É um meio de comunicação em que se utiliza a palavra escrita ou falada, as imagens, a música e outras tantas formas de comunicação, com muita rapidez e para todos na rede. Existe, é verdade, um vocabulário restrito e mínimo para se comunicar (conversar por escrito), o que empobrece muito a linguagem escrita, além de uma série de ícones que indicam se a pessoa está alegre, triste, nervosa, o que reduz a capacidade de expressar verbalmente esses sentimentos.
Essa nova tecnologia de informação oferece possibilidades quase infinitas de pesquisa. É fato que há dados demais para a capacidade humana de processamento, mas, se você tiver o mínimo conhecimento do funcionamento da internet e seus instrumentos, poderá obter excelentes informações e com uma diversidade nunca imaginada. Portanto, dependendo de como é Utilizada, a internet pode empobrecer a capacidade de pensar ou ser um instrumento para a obtenção de conhecimento. Nessa grande rede, encontram-se muitas das versões de um mesmo fato, cabendo a nós descobrir bons sites e profissionais que mostrem ângulos diversos de determinado fenômeno.
EXERCÍCIOS:
SANDUÍCHE DE MÚSICA E LITERATURA
Para termos uma ideia do que faz a indústria cultural, vamos tomar como exemplo uma música erudita e examinar como a massificação transforma um prato original, rico e saboroso em apenas um ingrediente de um grande sanduíche, distribuído nos quatro cantos do mundo. É a obra de arte transformada numa mercadoria sem qualidade.
Podemos ver e ouvir a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) interpretando uma obra de Mozart ou de qualquer outro autor erudito, com todos os instrumentos, para que ela seja fruída em seu máximo esplendor. Mas, se essa mesma obra for filmada e exibida no cinema com todos os seus componentes, a experiência de quem assiste a ela já será deferente. E a sensação será outra se a mesma apresentação for assistida em casa, em DVD.
Muitas pessoas não apreciam música erudita, pois normalmente a obra é longa, mas gostam de um ou outro trecho mais conhecido. Podem então ouvir no rádio ou comprar um CD com uma parte da obra, mas não toda ela. Temos aí mais um corte das possibilidades iniciais. Esse CD pode ser ouvido em casa ou no carro, e em cada caso as sensações serão diferentes. Se a opção for comprar um CD com os movimentos mais conhecidos interpretados por apenas um pianista a sensação será ainda outra:
O indivíduo que compra esse último CD ou que ouve no rádio essa interpretação vai ter a certeza de estar ouvindo uma obra de Mozart e pode até sair assobiando pelas ruas as partes que "comprou". Mas o que ouviu é algo bem diferente da obra original.
Observa-se fato semelhante quando uma obra literária de grande expressão, como a de Machado de Assis, por exemplo, é reduzida a pedaços ou a resumos, como os difundidos nos cursinhos para que os alunos obtenham alguma informação que lhes permita resolver as questões propostas nos vestibulares. Eles não terão o conhecimento ou a sensação que decorre da leitura integral de um livro desse autor, mas até poderão "achar" que leram e conhecem Machado de Assis, quando apenas tiveram contato com resumos e pedaços desconectados de uma obra inteira. Esses alunos estão consumindo um sanduíche quando poderiam estar saboreando com prazer um jantar bem elaborado.
1-    Obras musicais e literárias são criadas para serem apreciadas na integralidade, pois só assim se pode perceber, sentir e conhecer o que o autor de fato produziu. O que você pensa e como se sente quando só tem acesso a um pedaço ou arremedo de um livro ou uma peça musical?

2-    A indústria cultural, principalmente por meio da televisão e da internet, procura formar futuros clientes para os produtos de seus patrocinadores, incentivando desejos e necessidades que parecem naturais. Aponte exemplos disso no seu cotidiano.

4 comentários:

  1. Valeu professor! Parabéns!
    esse conteúdo aqui transcrito, facilita em muito o processo de socialização do conhecimento SOCIOLÓGICO.
    Eu também sou professor de Sociologia em Belém do PARÁ.
    Professor: Juscelino da Costa.

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  2. Professor,
    Parabéns pela transcrição do capítulo. Assim ficou bem melhor para manusear e socializar com os alunos. Tbm sou professor de Filosofia e Sociologia no Rio de Janeiro.
    Desde já agradeço
    Paulo Araujo

    ResponderExcluir
  3. Professor,
    Parabéns pela transcrição do capítulo. Assim ficou bem melhor para manusear e socializar com os alunos. Tbm sou professor de Filosofia e Sociologia no Rio de Janeiro.
    Desde já agradeço
    Paulo Araujo

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